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O outro nível

O cenário e as personagens vão mudando, mas a essência é sempre a mesma. As causas, em proporções variáveis, também. E o final? Regra geral, a história acaba mal. Ainda assim, a Esperança é a última a morrer. Não é o que dizem?
“Coisas simples são sem dúvida o melhor da nossa vida.”
Ao Manel calhou em sorte nascer numa família pobre da costa norte rural da ilha de São Miguel. O quinto de nove. Dois já partiram. Uma, ainda na infância, de leucemia. Outro, num acidente aos vinte. O mais novo, o Paulinho, tem um atraso. O pai, bêbedo, morreu novo, do coração, mas não antes de distribuir generosamente pancadaria por todos. Os motivos nem o álcool saberia explicar. E a mãe, deprimidíssima, agarrada à vida por um fio: o Paulinho. Só a morte do marido lhe trouxe alívio e a resgatou do mais profundo dos infernos, para a largar noutro, não menos sofrido. A felicidade de uma mãe não supera a felicidade do seu filho mais infeliz.
O Manel viveu o que uma criança não deveria. Cicatrizes por toda a parte. Da maior, impercetível a olhos não treinados, não conseguiu falar durante anos.
“Mas complicamos tanto que ela fica sem saída.”
Ao som do tiro de partida, o Manel e os irmãos iniciavam os cento-e-dez-metros-barreiras das suas vidas com milhas de atraso.
— Esquece isso, Manel, experimenta aí. [O primeiro pacote] Fica por minha conta.
— Perdido por cem, perdido por mil.
O caos predador veio de mansinho. Entrar no Hotel California, mais do que uma falsa promessa, é um erro crasso. Manter-se por lá, preso na teia, é insuportável, ilógico e caro. Juros altíssimos.
(O desespero pela próxima dose de heroína é algo que a maior parte de nós jamais conseguirá entender. Felizmente.)
Semanas depois, o que ganhava nas obras mal chegava para acalmar a tormenta.
“Life is a bitch and then you die. That’s why we get high.”
Não se chega inteiro à saída, inacessível a quase todos. O check-out paga-se caro, com a vida ou como que sobrar dela. O caminho até lá, um calvário. Internamento atrás de internamento. Recaídas, todas as vezes. Comunidades terapêuticas. Recaídas. Doze passos. Recaída. Metadona, metadona, metadona. Recaída, recaída, recaída. Fuga para a América, roubos, tráfico, sem-abrigo, prostituição, confrontos com a polícia, tribunais, prisão e deportação. Recaídas, sempre.
Num derradeiro que-se-lixe, lançou-se num voo picado, Kamikaze. A descer toda a castanha ajuda. Seguiu-se uma rápida incursão pela Urgência e três meses de residência fixa nos Cuidados Intensivos.
“Life is a high, but we get down a lot.”
Não se sabe ao certo o que lhe passou pela cabeça nos Intensivos, para além do Staphilococcus aureus, outros bichos e muitas, muitas drogas. Provavelmente, o filme da sua vida, vezes sem conta. Três meses ali são uma vida inteira. No filme, reviu-se no percurso do pai. Perdoou-o…Perdoou-se!
“Desaperta o garrote, dá a volta a esse mote.”
E o Manel deu mesmo. O porquê desta vez, e não de todas as outras, escapa-nos. A bala não lhe passou ao lado, acertou em cheio. Ele, habituadíssimo a sobreviver, fez o que faz melhor. Safou-se. Deu com a saída, acertou contas com a sorte e saiu. Apesar da certeza do absurdo, prosseguiu para o outro nível. A segunda vida. Ou a sétima, se contarmos bem.
Dos traumas e cicatrizes, o Manel fez trampolim. Hoje, ajuda outros a sair das ruas e das drogas. No final (feliz só até à próxima recaída), a exceção confirma a regra.

*Com excertos da letra da canção Outro nível dos Da Weasel.

João Mendes Coelho*

  • Médico psiquiatra e adictologista
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