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Viagem sem regresso

Manuel da Ponte, mal raiava o dia, não conseguia cerrar mais os olhos.
Com 88 anos, viúvo, residia com uma filha em New Bedford. Tinha emigrado em 1924. Na cidade baleeira, à época, viviam cerca de 35 mil portugueses, nem todos ligados à caça à baleia, devido ao declínio do preço do óleo.
Muitos emigrantes trabalhavam em “farms”, outros na pesca. As mulheres empregavam-se nas fábricas de confeção, embora os salários fossem baixos.
Manuel da Ponte, natural da Ponta Garça, era muito poupado. Ao longo da vida conseguiu amealhar uma pequena fortuna com que enfrentou os gastos com a doença da mulher, a sua amada Piedade.
Um dia, – pensava ele – ainda havia de regressar, mais não fosse pelas festas do Senhor Santo Cristo e do Espírito Santo.
Erguendo-se a custo para se recostar na almofada que a mulher bordara durante a sua doença, olhou para o quadro em frente do Senhor Santo Cristo e balbuciou entre dentes:

  • Já nã tenho saúde que me leve lá. Eu bem lutei a vida inteira, mas a idade não perdoa!…
  • Que disse pai? Precisa de alguma coisa? Já lhe trago o café… – atalhou a filha mais nova, Maria da Piedade. Já nascera na América e era a última de um rancho de cinco filhos “tantos quantos Nosso Senhor quis”, dizia ele orgulhoso da sua prole.
    Quando a menina nasceu, Manuel e a esposa não perderam tempo em escolher o nome:
  • Há de ser Maria da Piedade, o nome da Nossa Senhora, Padroeira de Ponta Garça! – disse o pai, com voz determinada, respondendo à enfermeira parteira. – Nome em português! “Sure”! Ela tem-nos ajudado tanto que devemos agradecer-lhe, mantendo-a na nossa família!…
    A família Ponte ostentava, como era costume, o nome na porta da entrada. E todos a consideravam gente de trabalho. Os filhos eram dedicados aos pais e amantes de Portugal que já haviam visitado duas vezes. Nas suas viagens, os pais nunca quiseram acompanhá-los. Estavam ali para trabalhar, ganhar dinheiro e deixar uma vida boa à família o que ainda não haviam conseguido, diziam eles.
    Os anos, entretanto, foram passando, as famílias crescendo e as maleitas surgindo mais ou menos graves.
    Manuel ainda se erguia da cama, mas tinha muita dificuldade em andar.
    Maria da Piedade, muito cedo ainda, antes de sair para o trabalho, cuidava do pai, deixando-o sentado num cadeirão confortável, enrolado numa manta de lã, em frente à janela e à TV, sempre com o telefone por perto, para o que necessitasse.
    Era uma rotina diária que a filha não falhava e a que o pai se habituara.
    “A América é muito boa, mas para quem trabalha. Quando surgem as doenças é um penar. Ficamos pr’aqui, engolindo o silêncio que nos consome a alma e nos mata a vida, sem um vizinho por perto ou um amigo que nos faça uma visita e nos conforte com uma palavrinha. É triste!..ao que se chega!…” – pensava consigo Manuel da Ponte.
    De repente, deu consigo a recordar o dia em que embarcou no Cais da Alfândega, em Ponta Delgada.
    Foi na semana da Festa do Senhor Santo Cristo.
    A “Varanda de Pilatos” estava repleta de pessoas: os familiares aguardavam os visitantes, os mirones pensavam talvez numa eventual partida. Fundeado na baía o navio SINAYA, da “Fabre Line” aguardava o desembarque para receber os passageiros que se encontravam no velho cais, junto da bagagem de pequenas mala de madeira.
    A de Manuel só transportava uma muda de roupa, algum pão e uns pedaços de chouriço dentro de um saco de pano que a mãe lhe fizera. O dinheiro era pouco e primeiro havia que pagar a dívida ao Sr. João Morgado para comprar a passagem.
    Naquele dia do embarque, o sol estava muito quente, o céu limpo e o mar não se mexia. Daí o ter pensado que até Boston teria uma boa viagem e um futuro promissor o aguardava. Força para trabalhar não lhe faltava.
    Um dia haveria de regressar, com dólares bastantes para viver bem, mas só quando a vida estivesse melhor. “Trabalhar de sol-a-sol, como um escravo, nunca mais!…” pensava ele para consigo.
    Já em viagem prometera voltar à terra para agradecer à Senhora da Piedade, ao Senhor Santo Cristo que estava ali na sua frente emoldurado, como no próprio andor, e nessa ocasião levaria a família toda consigo.
    Estava ele nestes pensamentos, quando uma madorna se apoderou dele e deixou-se dormir na paz dos anjos. * * *

Na rua não passava viv’alma, nem se ouvia nenhum movimento de automóveis.
Mais além, no “down-town” que há muito Manuel não visitava devido às maleitas que o haviam fechado dentro de quatro paredes, a cidade movimentava-se numa roda vida.
A meio da tarde, a estridente sirene das fábricas deu por findo o dia de trabalho e a saída dos operários.
Maria da Piedade, conhecida pela competência e dedicação, apressou-se a tomar o caminho de casa, porque naquela manhã o pai lhe parecera um pouco triste.
Na fábrica só se falava das Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres e dos familiares e amigos que tinham viajado de avião.
“É verdade que há também Imagens do Senhor em Fall River e Bristol, mas não são a mesma coisa. Aquela tem um olhar profundo, um rosto comovente…”- pensou Maria da Piedade já no regresso a casa. “Infelizmente, meu pai que desejava tanto visitar a sua terra nesta altura, não concretizou, mais uma vez, esse desejo. Pode ser que as imagens da procissão vindas de lá, transmitidas pelo Canal 20, o tirem daquela amargura…”
Imbuída destes pensamentos, Maria da Piedade abriu, de rompante a porta de casa. Chamou pelo pai e só se acalmou, quando ouviu a voz confiante de Manuel da Ponte: “Estou aqui, Maria, acompanhado pelo Senhor Santo Cristo. Entra!…”
A filha dirigiu-se ao quarto e encontrou o pai fitando confiante, o quadro da Imagem sobre o colo. As lágrimas caiam-lhe. Entre dentes, o pai suplicava, fervorosamente: “Senhor Santo Cristo, rogai por nós! Meu rico Santo Cristo, rogai por nós!…”
Perante tanta Fé, a filha abraçou o pai e ambos ficaram largos momentos em silêncio.
De repente, o pai, exclamou, vencido: “Seja feita a Vossa vontade!…” Ao que a filha, enxugando as lágrimas respondeu com voz trémula: “Assim na terra como no céu”…

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

P.S. Foto: Revista “Os Açores”, agosto, 1924

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