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25 de Abril: A Revolução dos Capitães

“Os oficiais superiores, majores, tenentes coronéis, coronéis, e os oficiais generais não andavam de G3 na mão em operações. Compreende-se, portanto, que tenham sido os capitães a fazer o 25 de Abril.”

O cinquentenário da Revolução foi celebrado na rua e em cerimónias oficiais porque, apesar de todas as queixas que possamos ter, o 25 de Abril, com os três Ds do seu programa: descolonizar, democratizar, desenvolver, valeu a pena. O Portugal de 2024 é muitíssimo diferente do de 1974 e uma das diferenças, hoje por muitos esquecida, foi o fim da Guerra Colonial. Em boa hora nesta data a RTP exibiu de novo a excelente série documental “A Guerra”, concebida e realizada por Joaquim Furtado, e estreou “A Conspiração”, uma série sobre o Movimento dos Capitães, realizada por António-Pedro Vasconcelos.
Em 1961 iniciou-se a Guerra em Angola. Devido ao fechamento em que Portugal vivia, compreende-se que o país tenha reagido com surpresa aos massacres no Norte de Angola e obedecido à ordem se Salazar: “Para Angola rapidamente e em força”. Treze anos depois, em 74, a guerra continuava em Angola e tinha alastrado à Guiné, desde 63, e a Moçambique, desde 64. Na Guiné, estava perdida; em Moçambique, os guerrilheiros da Frelimo já atuavam no centro da Colónia; em Angola, a situação militar parecia mais controlada. Todos os militares, do quadro permanente e milicianos, e os civis bem informados sabiam que uma guerra de guerrilha não se vence militarmente e o poder político só conhecia a resposta militar aos movimentos de libertação. Ora, quem fazia a guerra propriamente dita, quem comandava os soldados no mato, eram os capitães coadjuvados por alferes e furriéis. Os oficiais superiores, majores, tenentes coronéis, coronéis, e os oficiais generais não andavam de G3 na mão em operações. Compreende-se, portanto, que tenham sido os capitães a fazer o 25 de Abril.
No fim da década de 60 e início da de 70, as consequências da Guerra começavam a ser cada vez mais percetíveis na chamada Metrópole. Nos inícios dos anos 70, em conversa com o Professor Francisco Soares Gomes SJ, que lecionava “Filosofia da Religião” na Faculdade de Filosofia da UCP, em Braga, tomei conhecimento de um dado significativo. Com a colaboração dos alunos, o Professor tinha organizado inquéritos para recolha de dados sobre as práticas religiosas da população do Minho. As respostas ao inquérito às crianças da catequese mostravam que quase todas rezavam diariamente por familiares que tinham em África a combater, prova de que até os mais pequenos já tinham a guerra bem presente nas suas vidas.
A primeira vez que tive a noção clara de que eram os capitães que faziam a guerra foi na viagem para Moçambique, para onde fui mobilizado. Cheguei à cidade da Beira no dia 25 de abril de 1968, a bordo de um avião da TAP que só transportava militares; poucos dias depois, com boa parte deles, embarquei num navio da Marinha rumo ao Norte. Logo que entrámos a bordo, fomos distribuídos segundo as categorias: os oficiais foram para a sala do bar dos oficiais, os sargentos, para a dos sargentos e as praças, para a das praças. Logo que o navio zarpou, o Imediato veio ao bar de oficiais dar-nos as boas vindas e explicar que as acomodações do navio estavam totalmente ocupadas pela guarnição, pelo que teríamos que fazer vida naquela sala. Quando anoiteceu e nos juntámos a conversar, constatei que os alferes era todos milicianos e os três capitães, oficiais do quadro permanente, iam para a terceira comissão. No meio da conversa, alguém começou a dissertar, com grande ligeireza, sobre invasão do “Estado Português da Índia”. Um dos capitães, o mais velho, reagiu saindo da sala, mostrando com clareza o seu desagrado com a conversa; fez-se silêncio total. Passado um breve momento, um dos dois capitães presentes informou que o camarada tinha reagido daquela maneira porque estava na Índia quando da invasão do território pelas forças armadas indianas e explicou que os militares portugueses feitos prisioneiros tinham sido internados durante vários meses em campos de concentração com péssimas condições, à espera do repartimento.
Como disse atrás, eram os capitães que faziam a guerra e, por isso, mais cedo do que os oficiais superiores, perceberam a necessidade de provocar uma profunda mudança política no país. As três estórias que vou contar, mostram que nos postos superiores estavam pessoas que pareciam viver noutro mundo.
A partir dos meus 20 anos, a conselho de um médico, passei a usar pêra para evitar inflamações frequentes na cara. Quando fui incorporado em Mafra, tive que a cortar. Passado pouco tempo, passei a ser incomodado nas formaturas que antecediam as saídas de fim de semana, “porque não tinha a barba bem-feita”. Durante a especialidade, na Escola Prática de Administração Militar, no Lumiar, fui menos incomodado; no Regimento de Cavalaria nº 8, em Castelo Branco, onde fui colocado como aspirante a oficial miliciano, não tinha formatura para sair do quartel. Pouco tempo depois, saiu, na Ordem de Serviço, informação sobre o Despacho do Ministro do Exército segundo o qual quem quisesse alterar o talho de barba devia requerer autorização ao Ministério. Foi o que fiz e o despacho foi favorável. O futuro, contudo, trouxe várias peripécias.
Passado algum tempo, um camarada do Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa, sediado em Queluz, propôs-me uma troca; aceitei. Quando ele chegou a Castelo Branco e me viu de pêra, comentou: “Eh pá, essa barba vai ser o diabo!” Respondi-lhe que tinha despacho favorável. Cheguei a Queluz para me apresentar num fim da tarde, depois do “Toque de Ordem”. O oficial chefe da secretaria ao ver-me reproduziu a frase citada. Devido ao adiantado da hora, disse-me que a apresentação ao comandante ficava para o dia seguinte. Quando, pelas 9 horas, o chefe de secretaria me acompanhou ao gabinete do comandante da unidade, aconselhou-me a ser rigoroso no cumprimento da praxe. Logo que me foi dado sinal para entrar no gabinete, dei os dois ou três passos em frente com os necessários batimentos e, fazendo a continência, iniciei a fórmula estabelecida: “Apresenta-se o aspirante…”; não houve tempo para dizer o resto. O Coronel Galhardo, era o seu nome, iniciou um discurso exaltado a propósito do meu talho de barba; de todo o arrazoado fixei apenas uma afirmação: não me queria no Regimento. Passado um tempo, parou com a diatribe e deu ordem para me retirar. Bati a pala e iniciei a meia volta necessária. Ia ainda a meio e o Coronel iniciou novo discurso; eu fiz a volta inteira para ficar de frente para ele, que terminou o “sermão” com a pergunta: “também tem autorização para usar o cabelo comprido?”. Respondi que não; deu-me ordem para o ir cortar.
Saído gabinete e fui ao barbeiro. Quando regressei à secretaria, o chefe disse-me: “Saiu-lhe a sorte grande: vai prestar serviço na Bateria de Porto Brandão, na margem esquerda do Tejo, em frente a Belém. Muito provavelmente não voltará a ver o nosso Comandante”.
Passado algum tempo, o General Comandante da Região Militar de Lisboa visitou o quartel, estava eu de oficial de dia. Quando, ao lado do capitão que comandava a Bateria, cumprimentei o General, percebi imediatamente que ele não tinha apreciado[a] minha pêra. Terminada a visita, o capitão informou-me que o General lhe dissera que me iria nomear para fazer a entrega aos pais das urnas vindas do Ultramar com militares mortos. Como já estava mobilizado para Moçambique, isso não chegou a acontecer.
A minha estória de barbas e cabelos, contudo, não ficou por aqui. Na parada da companhia em que prestava serviço no Norte de Moçambique, numa zona operacional, ouvi o General Comandante da Região Militar, no fim de uma visita, dizer ao meu comandante que “era preciso estar atento às barbas e aos cabelos do pessoal”; fiquei estupefacto.
Parece-me lícito, portanto, concluir que os oficinais superiores, pelo menos muitos deles, viviam noutro planeta.

José Henrique Silveira de Brito

Braga, maio de 2024

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