No espectro temático desta série de doze artigos (v. caixa) não podiam faltar a cooperação entre Governo Regional e municípios, as acções típicas de cada um e o papel supletivo de ambos na vida cultural na Região: da conservação do património ao reforço de infra-estruturas e ao apoio à criação literária e artística, à realização de festivais e à celebração de efemérides centenárias ou outras. Mas também a itinerância entre ilhas de exposições que a todas digam respeito ou que todas beneficie, num espírito de inclusão territorial que é um dos desígnios da Autonomia; sem esquecer — e como tem sido esquecida!! — a diplomacia cultural e a internacionalização que, com programação antecipada e orçamento garantido, leve, uma vez que seja a cada ano, o que de melhor se faz nos Açores a países ou continentes com os quais tem relações preferenciais.
Uma política cultural digna do nome atende a esta complexidade de intervenções, seguindo um planeamento concertado que substitua o casuísmo e o distraído instalados, e não se deixe prender pelo nó-górdio de regulamentos processuais obsoletos que fazem — ou ajudam a — empurrar com a barriga, para o ano seguinte ou para nunca mais, o que melhor ficaria feito quanto antes. Depois, é preciso observar de perto o que em cada ilha está por fazer, não arrastando os pés na resolução de impasses que a todos deixam mal. Só um exemplo, que há pouco constatei com espanto e mágoa: como pode o Núcleo de Vila do Porto do Museu de Santa Maria continuar sem a exposição permanente que Vasco Cordeiro, chefe de governo, prometeu na inauguração, em Julho de 2018 (e já então devia existir… aliás, como é de regra!)? Tratando-se dum equipamento de grande significado para a «ilha primeira», e como tal para todos os Açores, seis anos de espera por conteúdos museográficos compatíveis com a sua importância histórica demonstram uma enorme desatenção de vários — uma desatenção contra a qual, suponho, o Município mariense não terá deixado de clamar, mas sem efeito. É de abanar a cabeça — a cabeça baixa…
Ora, num território onde tanto está por fazer a cooperação deve orientar todas as instituições, e isso exige trabalho de proximidade e contacto contínuo que no caso dos museus passam por: transmissão de conhecimentos técnicos e formação contínua do pessoal adstrito a entidades municipais ou locais, qualificando-as para desempenhos válidos; inventários partilhados que facilitem a identificação de peças a requisitar para exposições temporárias noutras paragens; e, claro está, auxílio especializado em trabalhos de conservação e restauro. Serão todas estas instituições — tonificadas e mobilizadas, cada uma ao seu nível próprio mas em acção conjugada — indispensáveis à criação duma mentalidade patrimonialista por parte da população, de modo a que aquilo que a alguns possam parecer tarecos velhos sem valor, prontos para serem lançados ao lixo — da vestiária ao mobiliário, dos objectos de uso doméstico a alfaias agrícolas ou piscícolas, de jornais antigos a álbuns de família, filmes amadores, fotografias ou bilhetes-postais de antigamente, e mais, muito mais… —, a outros, mais informados, mereçam receber salvaguarda garantida e urgente, em instalações apropriadas ao seu acolhimento e tratamento museológico ou arquivístico, por simplificado que seja. A defesa do património material e do património imaterial é essencial à evidência de qualquer identidade cultural, e se se quer afirmar uma, há que agir em consequência.
No artigo desta série dedicado a editoras e livrarias, referi-me a facilidades fiscais que as ajudariam a arrancar ou a persistir em meios claramente adversos (e importa reconhecê-lo sem rodeios), mas há outro campo em que esses e outros apoios poderiam ser relevantes: o da imprensa, para que cada ilha tenha, ao menos, um jornal mensário onde os seus problemas se discutam e a sua própria história seja comunicada às novas gerações (Flores, São Jorge e Graciosa não têm sequer um desses). Um lote de 200 assinaturas da edição digital e de 100 da impressa a distribuir anualmente por instituições dessas ilhas e de todas as demais — o que parece estar a ser desenvolvido, mas sem custos partilhados entre governo e autarquias, como parece mais razoável —, e possibilidade de os indivíduos e as empresas descontarem o valor dessas assinaturas nas suas declarações contributivas, já faria diferença junto de vários públicos e idades, até para que o bom hábito quotidiano de ler o jornal conquiste jovens adultos que já cresceram sob o domínio avassalador, e supostamente auto-suficiente, das redes sociais. Não se trata, portanto, dum apoio directo às empresas ou aos jornalistas, pois isso deixa sob suspeita a sua independência fundamental, mas de um estímulo a uma comunidade de leitores estabelecida e que se pretende ver muito ampliada, com vantagens para a cidadania.
A cooperação entre Governo Regional e municípios também deve existir no plano da publicação e da distribuição de livros, em iniciativas próprias ou em apoio a institutos culturais ou editoras, através da aquisição partilhada de livros em número suficiente para viabilizar a sua impressão. Não faz nenhum sentido sobrecarregar as autarquias com esse ónus, recebendo estas uma quantidade de exemplares que não terão capacidade de escoar e vão ficar a apodrecer num canto de armazém, do mesmo modo que a DRAC não pode continuar a impor aos editores tiragens acima do que é sensato e, sobretudo, restringir o seu financiamento a um único regime anual de concursos (cujos prazos sequer cumpre…). Uma linha autónoma de projectos com municípios — para apoio de privados ou não — deve ser criada e priorizada, com decisões rápidas de parte a parte. E do lado da distribuição, algo precisa de ser pensado em conjunto e com profundidade para contrariar insuficiências estruturais, inclusive tornando aeroportos, aeródromos, portos e estações de correio mais evidentes postos de venda de livros, com uma expressiva quota de autores açorianos ou de obras sobre os Açores. E note-se que a capacidade negocial face a terceiros será maior com governo e municípios no mesmo lado da mesa.
Em qualquer caso, este acréscimo e melhoramento da cooperação institucional não pode resultar no reforço da tutela pública sobre a autonomia e a iniciativa das pessoas, antes deve ser um estímulo para elas e para o seu sentido de pertença comunitária, e ao mesmo tempo facilitar o reconhecimento dos Açorianos entre si, dumas ilhas às outras. E, neste domínio, a itinerância de exposições e a transmissão por streaming de eventos culturais terão sempre um bom papel a desempenhar.
( A continuar. )
I. «A literatura açoriana e a sua recepção», 22 de Novembro de 2022
II. «Editoras, livrarias, bibliotecas públicas», 29 de Novembro de 2022
III. «Espólios e arquivos literários e artísticos», 7 de Dezembro de 2022
IV. «Institutos culturais e históricos», 30 de Dezembro de 2022
V. «A Enciclopédia Açoriana», 4 de Fevereiro de 2023
VI. «Debate público e programas eleitorais», 4 de Janeiro de 2024
VII. «Bibliografia Geral dos Açores», 22 de Fevereiro de 2024
VIII. «Residências literárias e artísticas», 25 de Maio de 2024
IX. «Os deveres da oposição», 14 de Junho de 2024
X. «Crowdfunding editorial e mercado da arte», 27 de Junho de 2024
e também:
«Atenção ao Manifesto para a Leitura», 7 de Novembro de 2023
Vasco Rosa