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De antigos valores ilhéus ainda vivos

Há cerca de duas décadas venho teclando uns registos de quase-diário, a que chamo de “notas bárbaras”, e partilhando-os com alguns amigos. Pediram-me que, por razões a tornarem-se em breve evidentes, divulgasse esta transcrita a seguir. Todavia, por ser uma narrativa curta, decidi engrossar o ramalhete juntando-lhe mais umas breves.

  1. Esteve por aqui uns dias a Ana Catarina, antiga aluna nossa na Brown e doutoranda da Leonor, hoje professora na famosa Emory University, em Atlanta, Georgia. Com a mãe e um casal de filhos, decidiu finalmente visitar os Açores sobre que por sinal já lera bastante num curso em tempos feito comigo. Depois de uma passagem por S. Miguel em vol d’oiseau, deram um salto ao Pico e Faial. No último dia, já do aeroporto, telefonou-me emocionada a contar a história de, nos Arcos do Cachorro, Pico, ter-se posto a tirar fotografias deixando obre as rochas de basalto a sua mala contendo uma carteira com 200 euros e uma série de cartões de crédito. Só uma hora e meia mais tarde se apercebeu do esquecimento, quando já estava longe e precisou de pagar uma compra.
    Regressou ao local, contudo não encontrou nada. Recomendaram-lhe que telefonasse para a polícia. Fê-lo para a Madalena e para S. Roque. Nadinha. Entretanto, minutos depois recebia uma chamada da polícia da Madalena a informá-la de que tinha acabado de lá chegar um indivíduo com a respetiva mala encontrada nos Arcos. Um tal senhor José Silva saíra do seu caminho de propósito para ir entregar a dita na Madalena, pois imaginou tratar-se de turista e por isso normalmente a procuraria ali. Encurtando a história: a Ana mandou-se para lá de corrida e encontrou-se com um simpático casal que, além de lhe entregar a mala com o conteúdo intocado, acabou convidando-a e à família a irem a sua casa.
    Comentário do filhinho Lucas: O Pico é muito lindo, mas o melhor do Pico são as pessoas.
    A ilustração desta crónica é uma foto da majestosa montanha tirada pela Ana na viagem de regresso do Faial a Lisboa.
  2. Numa nota acompanhada de fotos, falei de como, vai para não sei quantas décadas, ao avistar Ponta Delgada a partir da Caloura percebia razão de os primeiros navegadores aqui aportados lhe terem dado esse nome (a foto junta fala por si). De Vila Nova de Gaia, o pontadelgadense Rogério Oliveira escreveu-me:
    Há até quem diga que Ponta Delgada foi assim baptizada devido à ponta de Santa Clara.
    Respondi-lhe assim:
    Pois deve ter toda a razão e eu deveria ter-me explicado melhor pois, antes de a doca existir, a ponta saliente era a de Santa Clara. Essa é que é a ponta delgada. A vilória e cidade cresceram para o lado leste.
    Entretanto, o assunto acabou ficando resolvido porque o Pedro Almeida Maia socorreu-me enviando-me uma passagem de Gaspar Frutuoso onde o assunto vem esclarecido:
    Esta cidade da Ponta Delgada é assim chamada por estar situada junto de uma ponta de pedra de biscouto, delgada e não grossa como outras da ilha, quase rasa com o mar, que depois, por se edificar mais perto dela uma ermida de Santa Clara, se chamou ponta de Santa Clara” (Saudades da Terra, Livro IV).
    Obrigado, Pedro.
  3. No último dia da visita da Ana Catarina, levei-a e à família à lagoa do Fogo. Na época alta, só os locais podem levar carro até lá cima. Os turistas têm de estacionar num parque ou na base da serra, do lado norte ou do lado sul, e depois tomar um autocarro para irem ao topo admirar os panoramas. É uma maneira inteligente e prática de preservar o ambiente lá no alto, onde agora já não deparamos com o triste cenário de filas de carros estacionados, como acontecia antes. E até consegue haver silêncio. Ou quase.
    Junto aos parques de estacionamento, um agente de segurança controla a passagem dos carros. Os locais têm de exibir prova de residência. Ontem, ia mostrar-lhe a minha identificação (desde o ano passado sou de novo residente oficialmente, pois permaneço na ilha durante metade do ano), quando me acenou para seguir viagem exibindo um ar de maroto desdém: Eu já o vi ontem. Pode seguir!
    Na cara dele estava espelhado um cínico descrédito. Tomou-me – aposto! – por um engajador de turistas que os leva de passeio a ver as vistas da lagoa sem eles terem de tomar o autocarro. E, claro, imagina-me a aproveitar-me da lei para ganhar umas massas.
    Estava claríssima na cara dele essa convicção. Nunca acreditará que eu ando dia sim dia não a acarretar amigos de borla a ver a lagoa. – Vá lá contar essa a outro! – responder-me-ia se por acaso eu tentasse explicar-lhe.
  4. Tive de preencher formulários sem-fim para submeter a concurso a edição de um livro de uma histórica figura açoriana. Passei as passas do Algarve para entender tudo e, não fora a ajuda de pessoas amigas, teria sido chumbado. Cada vez que julgava que o processo terminara, surgia ainda mais uma falta – um documento submetido em papel assinado não poderia ser acompanhado de outro com assinatura digital, ou faltava uma rubrica, ousei lá que incrível falta mais. A série prolongou-se de forma a roçar o ridículo. Não dá para contar. Só contaria se me encontrasse com Kafka para lhe fazer perceber que as cenas por ele descritas no seu clássico livro não passavam de brincadeiras infantis comparadas com o processo em que me vi envolvido.
  5. Para acabarem tom mais otimista, reproduzo um email chegado de Lisboa da açorianófila investigadora Elisa Costa:
    Estou a reler, dia a dia (acompanhando o périplo) o magnífico As Ilhas Desconhecidas. Ora, há exactamente 100 anos, Raul Brandão em “A Ilha Azul” escrevia – e cito (p. 58):”A outra coisa que exerce aqui uma verdadeira fascinação é o Pico […] parece um efeito mágico de luz, um fantasma posto aí de propósito para nos iludir e mais nada […] Se eu vivesse aqui, queria uma casa e uma cama onde só visse o Pico. Ele enchia-me a vida.”
    Mas toda a descrição feita do Pico é, não tenho outra palavra, soberba!
    Resta dizer-lhe que se trata da edição prefaciada pelo Pedro da Silveira, ed. Perspectivas & Realidades [1988].
    Este email parece-me uma mais agradável maneira de fechar este pacote de notas que abriu com um singelo hino ao Pico.

Onésimo Teotónio Almeida

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