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Mais um diário de Marcello Duarte Mathias

“É um livro que vale a pena ler porque dá acesso a informação importantíssima para se perceber muito do que aconteceu e, assim, ultrapassar a espuma dos dias presente na época em muitos dos discursos dos atores políticos e nas parangonas da comunicação social.”

Nos últimos meses li dois livros da autoria de dois embaixadores que, cada um à sua maneira, me impressionaram. O primeiro foi Diplomacia em Tempo de Troika, de Luís de Almeida Sampaio [Lisboa: Publicações D. Quixote, 2022], embaixador na Alemanha na altura em que Portugal estava sob o “Programa de Assistência Económica e Financeira 2011-2014”. O que me levou à leitura foi a curiosidade de, em primeiro lugar, perceber o que faz e como trabalha um embaixador no papel de representante do país no estrangeiro e, em segundo lugar, obter mais informação fornecida por alguém que acompanhou, de um ponto de vista privilegiado, o processo complexo vivido na época, pois que, estando na Embaixada em Berlim, tinha acesso mais direto ao ponto de vista alemão, onde pontificavam o poderosíssimo Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças, e a chanceler Angela Merkel, duas personalidades na altura fundamentais na política europeia. É um livro que vale a pena ler porque dá acesso a informação importantíssima para se perceber muito do que aconteceu e, assim, ultrapassar a espuma dos dias presente na época em muitos dos discursos dos atores políticos e nas parangonas da comunicação social. Além disso, ajudou-me a entender melhor como trabalha um embaixador: o modo como se relaciona com o governo do país onde exerce funções e as estratégias que monta para obter a informação necessária à sua atividade e a enviar ao seu governo.
O outro livro que me impressionou sobremaneira é de uma natureza completamente diferente. Trata-se do mais recente volume do diário publicado pelo embaixador jubilado Marcello Duarte Mathias, A Desoras. Diário 2017-202 [Alfragide: Edições D. Quixote, 2024]. O diário é um género literário consagrado de que temos alguns distintos cultores na história da nossa literatura, como José Saramago, cinco volumes com o título Cadernos de Lanzarote; Miguel Torga, dezasseis volumes com o título Diário; Vergílio Ferreira, com cinco volumes de Conta-Corrente seguidos de quatro da “Nova série” e ainda um diário póstumo e Fernando Aires, cuja obra diarística está reunida em Era uma Vez o Tempo. Diário (1982-2010) [Prefácio de Eugénio Lisboa. Guimarães: Opera Omnia, 2015]. Estamos, portanto, perante um diário, género literário particularmente difícil de cultivar, porque para a escrita diarística valer a pena não chega a qualidade literária dos textos; tem, necessariamente, de ter referências e uma reflexão apurada sobre temas verdadeiramente interessantes e com peso que justifiquem a sua publicação, como é este do embaixador Marcello Duarte Mathias.
Os dois livros objeto desta crónica são, portanto, completamente distintos. No primeiro, encontramos um embaixador a escrever para memória futura, mostrando o processo em que esteve envolvido e visando contribuir para a verdade histórica, mas, por certo, também preocupado com a sua correia e futuras colocações. No segundo, estamos perante um conhecido embaixador aposentado e escritor com vasta obra literária publicada, como se pode constatar consultando as páginas 317-318 do livro, e que, do ponto de vista profissional, tem a carreira feita, o que lhe dá, portanto, uma grande liberdade para, com coragem, dizer o que pensou e pensa, sem preocupações estratégicas quanto ao futuro. Não tem pejo, por exemplo, de dizer que se revia na política ultramarina do Estado Novo (p. 94)e nem de referir as diligências que fez para cumprir o serviço militar e, eventualmente, ir para a guerra (93-97). Aprecio esta coragem e honestidade que não estão ao alcance de todos. O que me admira é que Marcelo Duarte Mathias, filho de Marcello Gonçalves Nunes Duarte Mathias (1903-1999), embaixador de grande prestígio que chegou a ser ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar (1958-1961),tendo feito o ensino secundário em Paris (Liceu Janson-de-Sailly), frequentado a Universidade de Oxford (New College) de 1957 a 1959 e, posteriormente, feito o curso de Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa sendo, além disso, um leitor com domínio de uma vastíssima biblioteca, uma cultura imensa e conhecedor profundo da História, não tenha visto que a Questão Ultramarina portuguesa só tinha uma saída: a independência das colónias. Não compreendo que alguém que conhecia tão bem a História, não tenha percebido que há nela movimentos impossíveis de deter, como o da descolonização de África, e que qualquer tentativa de parar ou atrasar esses movimentos só contribuiria para que o seu desfecho fosse mais difícil e mesmo trágico, como foi o caso português; trágico para a antiga metrópole e trágico para os novos países.
Outro aspeto que me chamou a atenção neste diário prende-se com o tom fortemente nacionalista do autor, no que a palavra diz de amor à pátria e sua história. Para Marcello Duarte Mathias o estado nação faz sentido e tem grande valor, o que até compreendo; a necessidade de pertença, de “tomar parte e ter parte” (Paul Ricoeur) numa comunidade é fundamental. Talvez aqui esteja a origem das suas reticências no que se refere aos caminhos que a União Europeia vai tomando, porque considera contribuírem para a desvalorização e esquecimento do estado nação. Pergunto, contudo, se no atual contexto não é possível e mesmo vantajoso para as nações europeia, concretamente para Portugal, integrarem-se em organizações como EU para mais eficazmente acautelarem os seus interesses? Cada um dos estados europeus de per si estaria em melhor posição para desenvolver as suas políticas num mundo global como o nosso?
A escrita de Marcello Duarte Matias é de uma qualidade literária notável e revela uma capacidade de reflexão de alto nível ao longo das mais de trezentas páginas do volume. Como sugere uma afirmação de Onésimo Teotónio Almeida, citada numa orelha da capa, o livro reúne “um conjunto de reflexões de alguns dos nossos melhores autores dos mais diversos quadrantes” que merecem ser partilhadas. Além disso, acrescento eu, alguns dos pensamentos apresentam-se em formulações felicíssimas. Alguns exemplos: a resposta do Arcebispo Alexandre Mendonça ao nosso embaixador sobre os endinheirados da nossa comunidade da Venezuela: “Olhe, Sr. Embaixador, eles são tão pobres tão pobres que só têm dinheiro!” (158); sobre a vida: “Vidas falhadas por falta de ambição? sem dúvida. / Mas quando, à partida, se tem tudo, onde exumar energias para se ter mais?” (162);sobre o avançar da idade: “Envelhecer: morrer em lume brando” (168) e “A grande desconhecida é a velhice” (262); sobre a morte dos nossos amigos: “torna-nos, a nós, numa espécie de supranumerários” (195); sobre a morte e a doença: “A morte enobrece; a doença amesquinha” (293): sobre a nossa sociedade: “A civilização é uma fidelidade; a cultura, uma sobrevivência. A tradição militar e a tradição religiosa – um mesmo todo, a mesma legitimidade. / A metafísica da nação. A Europa. O Ocidente. Coisas invejáveis, coisas raríssimas. Coisas perecíveis” (268); sobre relações nos casais: “viver ao lado de alguém não é necessariamente conviver com esse alguém” (254). Quase no fim do livro, o embaixador tem este desabafo ao referir a doença de Alzheimer de que a esposa padece: “A maldição de Alzheimer: sermos íntimos de quem se nos tornou irreconhecível. / Esta mudez da memória é o primeiro sinal de que a morte já se pôs a caminho” (246). Aliás, ao longo do livro o autor fala várias vezes dessa doença. Devo confessar que sou muito sensível a estas referências porque nunca sabemos o que o futuro nos reserva; “receber a visita do senhor alemão”, como diz um amigo meu, é uma possibilidade que não podemos descartar.
Uma última nota. Como disse, o autor revela no diário uma cultura profunda e vastíssima, nenhuma das suas áreas lhe é estranha, o que lhe dá um saber de experiência feito sobre a sua importância na vida política. Seria bom encontrar, com mais frequência, este nível cultural nos nossos atores políticos.

José Henrique Silveira de Brito

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