Edit Template

Memórias de Joshua Ruah um Judeu de Lisboa

Este livro permite apreciar a estatura intelectual e a dimensão afetiva de um dos mais notaveis médicos da sua geração e também conhecer a história e a evolução da comunidade judaica do último século.

Em todos os países e em todas as épocas existem relações entre a Medicina, a Literatura e a Arte. O tema é inesgotável. Reportando-me, apenas, a Portugal direi que há médicos que foram grandes escritores sem nunca haver praticado a Medicina. Fialho de Almeida é um caso sintomático. Abel Salazar circunscreveu – se ao laboratório para investigar e dar aulas. Temos escritores como Fernando Namora que passaram, episodicamente, pela Medicina e dela recolheram matéria para fazer uma obra literária. Mas podemos, ainda, falar de médicos, em tempo inteiro, como Reinaldo dos Santos que publicou numerosos estudos acerca de história e a crítica de arte ou, então, de João de Araújo Correia, cronista por excelência do Douro e um dos maiores prosadores da língua portuguesa.
Liberto de algumas preocupações quotidianas Joshua Ruah decidiu entregar-se à escrita, a tornar publicas as suas memórias. Ficaram com o título Joshua Ruah Um Judeu de Lisboa. É uma descida ás raízes, para reviver lembranças da infância e da adolescência. Principiou aos cinco anos a estudar no Kindergarten, da Queen Elisabeth´s Scholl; esteve depois na velha Escola da D Olimpia; e, a seguir no Liceu de Passos Manuel. Foi colega de Jorge Sampaio e de Carlos do Carmo.
As memórias de Joshua Ruah, ao mesmo tempo que relatam fatos e acontecimentos relativos à história e à evolução da comunidade judaica, também descrevem o pequeno -grande universo que abrange desde o Chiado até á Calçada do Combro: as ruas, os becos e as travessas do Poço dos Negros. A boémia ruidosa do Bairro Alto. Também conheci, no final dos anos 50, essa Lisboa marginal. Ficou a ser a escola da aprendizagem da vida real.
Quando, Joshua Ruah, em 1959, entrou na Faculdade de Medicina ainda predominavam as trágicas consequências da Segunda Guerra Mundial. Na escolha da profissão pesou o fato de ser filho de um médico Moisés Ruah que logo advertiu: “vales pelo que sabes, não pelo que tens e um médico pode trabalhar em qualquer parte do mundo».
A Faculdade de Medicina de Lisboa, prosseguia um ensino desajustado das exigências contemporâneas, refratário á mudança, receoso de alterar a orientação instaurada pelo governo de Salazar. Dominava a subserviência política e o imobilismo pedagógico. Extinguira-se o «período áureo» da Faculdade prestigiada com o magistério de Pulido Valente, de Cascão de Anciães e de Fernando Fonseca, expulsos da cátedra por motivos políticos.
Revestiu-se, contudo, da maior importância para Joshua Ruah o papel desempenhado por Juvenal Esteves. Era um conhecedor atualizado de artes plásticas, de música e de literatura. As suas aulas não se restringiam ao ensino à Dermatologia. Incentivava o espírito critico e todos os outros interesses culturais. Insurgia – se contra as atitudes dogmáticas. Foi o mestre que abriu o caminho a Joshua Ruah – e a várias gerações – para o exercício da Medicina.
As outras influências recebeu-as de Gomes Rosa grande cirurgião e de seu pai Moisés Ruah também cirurgião de renome no domínio da Urologia. Aliás, desde o terceiro ano de Medicina, Joshua Ruah já começara a aprender e a colaborar, com os dois, nas salas de operações de hospitais públicos e privados. Ambos formaram discípulos por onde passaram: Moisés Ruah no Hospital de Jesus, no Hospital de São Luis e no Hospital do Lumiar – agora Hospital Pulido Valente – e Gomes Rosa, no Hospital de São José e no Hospital Curry Cabral. Embora sem cátedra foram verdadeiros mestres.
Joshua Ruah, no decurso destas memórias, apresenta-nos a realidade quotidiana, nos seus múltiplos aspetos. Até agora só havia, em lingua portuguesa, um outro livro de memórias judaicas a Vida de José Bensaúde, da autoria do seu filho Alfredo Bensaúde, fundador e primeiro diretor do Instituto Superior Técnico. Para a comunidade israelita a inauguração da sinagoga na rua Alexandre Herculano, há 120 anos, transferiu o epicentro judaico de Lisboa, da zona antiga da cidade, para o Largo do Rato.
O Chiado, todavia, nunca deixou de ser o Chiado, o grande centro de irradiação cultural: os teatros, a ópera, os cinemas, as livrarias, as galerias de arte, o comercio de luxo e os grandes armazéns. As exibições da moda, os cafés e as pastelarias, as tertúlias de artistas, de músicos e de políticos e de jornalistas. Nas mesas do café A Brasileira, logo de manhã até depois da meia noite, cruzavam – se as ironias, os sarcasmos e as murmurações da direita e da esquerda.
Este livro, em boa hora editado por Zeferino Coelho, e que tive a honra de prefaciar evidencia a estatura intelectual e a dimensão afetiva de Joshua Ruah. O seu modo de ser e de estar no mundo. O amigo que não desaparece nos momentos difíceis. Coloca-nos perante alguém que muito viveu, que muito ajudou os outros a viver e que, já depois dos 80 anos, não desiste nunca de viver.

António Valdemar *

  • Jornalista, carteira profissional número UM; sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa
Edit Template
Notícias Recentes
“Cheque-Livro” para jovens em 12 entidades
Lançado Queijo de S. Jorge com 40 meses de cura
Prémio Literário Vitorino Nemésio apresentado hoje no Centro Municipal Natália Correia
“MSC Virtuosa” estreia hoje em P. Delgada e pernoita com mais de 4 mil visitantes
Cesteiros de Água de Pau homenageados em obra de arte pública de Urbano
Notícia Anterior
Proxima Notícia

Copyright 2023 Diário dos Açores