Por autonomia política entendemos um sistema formal ou informal, fixo ou transitório, constitucional ou apenas legal ou contratual, de autogoverno de uma localidade adentro de um espaço político global. E entendemos por “unidade regional açoriana” um conceito político cujo todo compreende todos os seus elementos sociais e naturais.
A autonomia desde o seu povoamento que está à deriva. Só agora o podemos perceber porque foi necessário decorrer o tempo e a política para lhe perceber o timbre no tempo atual de democracia. Os seus povos viveram sempre com a ideia de serem portugueses e nesse registo psicológico sempre sentiram uma unidade arquipelágica pelas dificuldades da vida e centrados na fé, numa fé sacra por via da igreja, mas também na fé profana no circuito específico do Espírito Santo. Sentiram sempre uma dose de liberdade através do Espírito Santo, acomodando-se às raízes mais íntimas da humanidade de cada um.
Não se sabia então, e durante muitos anos, e séculos, que existia uma cunha muito distinta entre eles: no grupo central e ocidental encontram-se raízes de unidade em função do que se antedisse; mas que no grupo oriental funcionava outro modo de ser. Enquanto na Terceira se pode identificar uma consciência política de unidade regional; em S. Miguel a consciência não é de unidade regional, mas de interesses puramente económicos, isto é, uma consciência de ilha sozinha que lhe importava a sua sobrevivência e não a sobrevivência do todo. Isso é compreensível: num tempo em que as dificuldades eram muitas, compreende-se que a Terceira contivesse esse sentimento de solidariedade entre os povos de ilhas próximas umas das outras, mesmo que através da vista e das relações de parentesco e de comércio. Também é compreensível que S. Miguel, bem longe das restantes ilhas, contivesse esse mesmo sentimento à ilha de St.ª Maria porque no decorrer dos anos e a partir das viagens de barco a vapor estava bem ligada ao continente onde podia mais facilmente pedir ajuda do que embrenhar-se pelo oceano adentro. Seja como for, essa matriz está patente em vários comportamentos desde 1581 até hoje. Já temos contributo para essa compreensão da história política dos Açores.
A autonomia política constitucional implementada em 1976 vinha imbuída de esperança porque se baseava no texto de que se fundamentava «nas históricas aspirações das populações insulares»; embora a ideia esteja imbuída de elementos errados e errados propositadamente, transmitia, em todo o caso, essa esperança. E os primeiros anos de vivência democrática também a isso se prestava, como aliás se viu no grande sismo de 1980. Mas eis que a partir daí, sobretudo desde o ano de 1998, a unidade regional desfez-se paulatinamente a favor duma autonomia-ilha e com fortíssimos laivos de concentração e centralização de poderes e sobretudo de aproveitamento financeiro em preterição do todo regional. Dito doutro modo: uma ideia de região como uma ilha, servindo as ilhas, não como compromisso de unidade de solidariedade entre os seus povos, mas como compromisso económico de servidão à hegemonia padronizada na economia e na população.
Isto é: durante anos fomos acreditando que tínhamos unidade arquipelágica e de propósito ou por ignorância não quisemos perceber que a ilha-maior queria a sua autonomia, mas não a autonomia açoriana. Ou seja, durante séculos a autonomia foi sobrevivendo como uma jangada no mar alto e sem que os insulares pudessem fazer o que fosse para alterar o curso. Marquês de Pombal percebeu isso: a ideia de oferecer ao arquipélago um Governador Geral não tem apenas o ensejo de concentrar o poder do monarca; também era uma forma de garantir que o centro do arquipélago estava realmente onde a natureza a esculpiu, na ilha Terceira, porque qualquer desvio a essa naturalidade teria sempre mais custos. Isso é visitável através de alvarás que distinguem o arquipélago em três províncias, dos quais um com conjunto de cinco ilhas num grupo global de nove.
Se olharmos para os dados mais significativos da história política dos insulares, raramente vemos em S. Miguel um ato heroico – precisamente porque a sua elite foi sempre do interesse económico e preferencialmente em modelos de monopólio; e se comparada com a Terceira a distância ainda é maior. O símbolo do açor é terceirense, surgindo na moeda insular e nos primeiros brasões de Angra; a divisa da Região Autónoma “Antes morrer livres que em paz sujeitos” também é criação da Terceira; o liberalismo nas ilhas foi cunhado na constituinte da Constituição de 1822 pelos feitos históricos da Terceira; esta compreende a famosa Batalha da Praia; a Conquista Liberal dos Açores, e muitos outros predicados. Isto é, as ilhas sempre estiveram em deriva: a Terceira a manter a naturalidade açoriana e lusitana; S. Miguel a tentar fugir dessa responsabilidade.
Por isso, a centralidade e concentralidade micaelense na autonomia da atualidade – é um enorme problema. Confirma-o o conceito de ilhas de coesão que são um modelo de entregar uns trocos a umas ilhas mantendo-as entretidas num aparente desenvolvimento e numa aparente unidade regional. Em democracia – não é aceitável essa hegemonia irracional e inconstitucional.
Mas o paradoxo é que é doloroso: isso aconteceu, não quando vivíamos em monarquia e ditadura; mas em democracia. O 25 de Abril neste quadrado ainda é infeliz para os povos insulares, julgam que vivem em democracia, sem que saibam que é uma democracia indecente.
Arnaldo Ourique