Foi preciso chegar a um dos serões do Natal, que está agora terminando, para finalmente ouvir, em versão completa, a famosa oratória de Haendel, precisamente intitulada “Messias”. Certas passagens são especialmente famosas e por isso todos as temos mais ou menos no ouvido. Mas o conjunto é deveras monumental e justifica a perenidade da obra através dos séculos.
A versão a que tive acesso, através do Canal Mezzo, foi gravada na Catedral de Coventry, reconstruída de raiz depois da destruição provocada pelos bombardeamentos alemães durante a IIª Guerra Mundial, no decurso da chamada Batalha de Inglaterra. A orquestra, utilizando instrumentos da época, era britânica, bem como o Coro e os Solistas, uma Soprano, um Contra-Tenor, um Tenor e um Baixo- Barítono, cujos nomes não fixei, todos sob a direcção do Maestro John Nelson. (Por sinal tornei a vê-lo alguns dias depois, no mesmo canal, dirigindo o “Romeu e Julieta”, de Hector Berlioz, com a Orquestra Filarmónica de Estrasburgo e Joyce Didonato, a partir do Palácio da Música e dos Congressos da cidade sede do Conselho da Europa, local onde há já muitos anos pude ver a ópera “Nabuco”, de Verdi – e recordo bem o Coro dos Hebreus cantado de dentro de umas grades de prisão.)
A oratória de Haendel tem três partes, cada uma delas dedicada a um aspecto do papel do Messias, tal como é visto no Cristianismo.
A primeira parte versa sobre a promessa da vinda do Messias. Destaca-se a ária inicial do tenor sobre os benefícios que trará a todos os que o receberem: todo o vale será cheio e as colinas serão aplanadas! Culmina com o coro “Unto us a Child is born”, que antigamente era a frase inicial do Intróito da Missa do Galo, “Nasceu-nos um Menino, foi-nos dado um Filho! Sobre Ele repousa o Império e o seu Nome é Conselheiro Admirável…”
A segunda parte trata da salvação universal operada por Cristo, para tal convertido, como lembra a plangente área do contra-tenor, com todos os subtis cambiantes barrocos, “Ele foi desprezado (…) feito um Homem de Dores, votado ao sofrimento”. O famoso “Alleluia” do coro final era antigamente escutado de pé por toda os presentes; pelo menos assim pude ver num documentário sobre os festejos da Coroação da Rainha Isabel II, sendo ainda bem moço, numa matinée de Domingo no Coliseu.
A terceira parte refere-se à segunda vinda do Messias, para julgar os vivos e os mortos, no fim dos tempos. É marcada por uma longa ária do baixo, na qual se repete o alerta: “A trombeta soará!” E a orquestra acompanha destacando o som dos metais, evocando já o Juízo Final! Julgo já ter contado aqui uma vez como me senti esmagado pelo improviso do grande órgão da Catedral de Notre Dame de Paris, na saída do cortejo litúrgico após a Missa de Quarta-feira de Cinzas, sentindo já soar sobre todos os presentes as trombetas de Jesus na sua derradeira vinda ao Mundo…
Não assinalei nenhuma das árias da Soprano, mas o certo é que as teve e interpretou-as com alta qualidade, bem como o Coro, que não desmereceu do conjunto. Também a Orquestra deve ser destacada, tal como o seu Director, que aliás dirigiu sem batuta, apenas com as mãos, como se está agora notando cada vez mais usualmente.
John Nelson teve sempre a partitura diante dos olhos e foi-a seguindo atentamente, virando as folhas com a devida cautela. Nem todos se podem dar ao luxo de um Claudio Abbado, que ainda há pouco tempo vi dirigir de cor o Requiem de Verdi, executado pela Orquestra Filarmónica de Berlim, com solistas e coro, cujas referencias neste momento não tenho presentes. Foi uma verdadeira prova de força, aliás deveras esgotante, como se podia ver, no fim da peça, no rosto desfigurado do grande Maestro.
Tive muita pena que nesta temporada festiva não tivesse sido incluído na programação de qualquer dos canais de televisão, em emissão directa ou por cabo, a “Oratória de Natal”, de Bach. Recordo que Ernesto Melo Antunes, nos anos em que organizou as sessões de música gravada na Biblioteca do Liceu, agora lembradas na Exposição com peças do meu Arquivo Pessoal e onde alguns textos às mesmas correspondentes também estão incluídos, pretendia apresentar tal peça, mas nunca encontrou por cá quem então tivesse os discos em causa. Pelo que vi nos jornais, a Fundação Gulbenkian não falhou aos entusiastas de Bach e incluiu a Oratória na sua habitual programação de Natal.
Feliz Ano Novo!
João Bosco Mota Amaral*
*(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo
Ortográfico)