De olhos postos no espanto de ficar à superfície, observamos a IA com a perplexidade de nem saber definir o que é inteligência. Para além da capacidade de aprender, é a aptidão de formular novas conclusões ou resultados. A epistemologia de Kant limitou o conhecimento àquela realidade que é possível para nós. Não podemos conhecer a realidade em si. Piaget aproximou o computador da mente humana colocando a capacidade de memorizar inferior à assimilação de dados. Estes seriam aqueles que se organizariam com os dados já existentes de modo a ultrapassar um estádio para outro superior. O problema é que a IA não tem os limites que estabelecemos para nós. O seu idioma ultrapassa o humano.
Passamos o dia a receber informações mesmo que pouco queiramos saber disso. A maioria dos dados recebidos é memorizada sem damos conta. A capacidade da nossa memória é quase infinita face à nossa duração. Assim corremos o grande risco da perda de tempo com o inútil e o desconhecimento de realidades.
Diante de um futuro incerto, os pensadores voltam-se para o passado em busca de respostas para enfrentar esse desconhecido. O passado mostra-nos diferentes Eras de Descobertas. Cada uma foi sempre maior do que a outra, sem que nessa época, tivessem dado conta disso. Nenhuma tão vasta como a da IA. Diante do futuro, temos, ao menos, noção do desafio, do risco e da imensa mudança. Passamos da revolução industrial para a revolução tecnológica com todas as implicações que desconhecemos.
Cada vez mais as descobertas e o progresso dependem de investigadores que actuam em conjunto, desaparecem as descobertas de um só indivíduo como aconteceu com Tesla. Foi um dos últimos grandes investigadores solitários. A interacção faz desaparecer qualquer figura de polímata, essas pessoas espantosas que apareceram apenas em pequeno número ao longo da História.
No decurso da humanidade, os polímatas, ou seja, os prodígios humanos como Arquimedes, Newton ou Pasteur só podiam expandir os seus limites até onde as suas próprias capacidades o permitiam sem ligação com pensadores com ideias semelhantes. A interacção agora é um progresso com a concentração e ligação de pensadores com ideias semelhantes.
Alexis Carrell, prémio Nobel da Medicina, e filósofo ensaísta, já em 1935 preconizava na sua obra “O homem, esse desconhecido” a formação de um grupo de pessoas de elevada inteligência que se juntasse por toda a vida e em interacção formassem e desenvolvessem as suas investigações em conjunto. O Projecto Manhattan na segunda guerra mundial reuniu “uma densidade desproporcional de capacidades mentais com uma aplicação devastadoras em pouco tempo.” (Kissinger, in. Genesis, pág. 25) A IA e os algoritmos poderão ultrapassar rapidamente este resultado. Os problemas que tal capacidade levanta são enormes. O poder da mente será facilmente ultrapassado pois o treino da IA transcende todas as aprendizagens na doutrinação mais elevada e na interferência mais complexa. Por exemplo, num jogo de xadrez, a mente humana resume-se à manipulação de apenas quatro variáveis de cada vez, a IA consegue gerir simultaneamente incontáveis julgamentos de probabilidades a partir de inúmeras dimensões impossíveis para a mente humana. (Idem, Ibidem 33)
Em vez de probabilidades racionalmente viáveis, temos muita informação que não passa de “spam” que é como o lixo face a um conhecimento probabilístico em que se move a IA.
Um ser humano capta ingenuamente grande número de desinformação ou fake news em número crescente com muito pouco conhecimento organizado. Este é o único que nos pode dar sentido. O senso comum é um inconsciente colectivo onde nos movemos e que forma qualquer narrativa a que nos apegamos. Ora sem essa narrativa imaginária nenhuma teoria ou pensamento toma um sentido real.
A mudança matemática global
Ninguém ultrapassa do espírito do seu tempo (Hegel) só a IA se treina para um raciocínio abstrato com incontáveis probabilidades. A realidade dada pela I.A. toma muitas formas sem nunca se esgotar. O progresso está no dever constante das trocas entre o homem e a IA. A síntese resulta da realidade apreendida inesgotável.
A realidade passará a ser fornecida por uma inteligência que nos ultrapassa. Só temos interrogações e desafios já esboçados. Esta verdade levanta um impulso com que nunca nos deparámos. O medo de um poder que pode conter a nossa própria destruição é patente. Todavia, diante de cada desafio, a humanidade sempre encontrou esperança. Abrimos uma nova caixa de Pandora A revolução Industrial trouxe maiores desigualdades socais e económicas. O mesmo sucederá com a IA? A questão é “a IA vai fazer o que eu quero ou o que tu queres?”
O desafio, até agora, demonstra que o primeiro mundo será regido por “Alfas” poderosos, tal como Harari referia (in. Nexus, 2023) ao recordar Aldous Huxley em o seu terrível “admirável mundo novo”? O risco de uma humanidade cada vez mais desigual é o que aparece primeiro. Para Kissinger trata-se de um salto de fé. “as nossas mentes permanecem infantis em relação a Deus, (como mistério cósmico) ao nosso mundo e agora às nossas mais recentes acções.” (Kissinger, Genesis, pág. 223) O progresso tem sido inexorável para com os mais fracos. Harari na sua última obra ( 21 Lições para o século vinte e um) tem mais interrogações e dúvidas do que qualquer projecção imaginária. As interrogações dos mais lúcidos pensadores dos nossos tempos são uma fonte de perplexidade da maior parte das pessoas. Em tempo algum nunca se alcançou descobrir o futuro. Hoje as utopias estão todas transformadas em previsões pautadas por uma moral ao nível do planeta. Nem uma esperança cega, nem um pessimismo e medo poderão dar estratégias face a uma construção nova de uma era desconhecida. Compreender os desafios que se levantam à Humanidade será o caminho que podemos traçar mesmo que não cheguemos à compreensão de um futuro que não podemos pensar senão interrogativamente ou sem a correção possível do nosso entendimento. Sapere Aúde – ousa pensar – afirmava Kant no tumulto das Luzes. A promessa da esperança está no fundo da nova caixa de Pandora. O inominável é o idioma do futuro que não dominamos.
Lúcia Simas