“Às vezes assolava-nos o desejo de querer que a vida fosse sempre verão, escorreita e despreocupada, e que à noite tivéssemos sempre aqueles sonhos leves, a cheirar a verão.”
Esta noite sonhei com ela, a Fajã do Ouvidor daquele tempo.
Quando era tão envolvente o sol e o apelo a mar. Quando ela cheirava a mar e a fruta. A vinho mosto e a sal. No tempo em que nos esquecíamos da vida lá por fora, face à extensão daquele mar, ora calmo ora enrolado, a perder de vista. Cheia de nadadores que me faziam inveja.
Mas só minha era a poça atrás do cais. Onde se tomava pé e se podia saborear à vontade a água salgada e o seu fascínio de coisa viva e cheirosa. Como era bom entregarmo-nos ao sol e à água. Ao cheiro e ao apelo de mar..
As rochas abruptas onde nos empoleirávamos a desfrutar de vistas novas, e nos sentíamos senhores e donos de tudo o que nos rodeava. Foi nesse tempo a tentativa de me quererem ensinar a nadar, amarrada a uma corda e atirada para o mar do cais. Que aflição medonha o envolvimento poderoso das águas e eu à mercê delas, perdida e minúscula! Que susto, que aflição! Competir com a água do mar aberto, nunca mais!! Só no mar da poça, aí sim. Era o meu mundo líquido onde eu podia estar à vontade, apesar do mar estar ali ao lado, imenso e poderoso. Mas ali era bom sentir-se uma pessoa tão pequena e o mar tão imenso e tão poderoso.
Às vezes assolava-nos o desejo de querer que a vida fosse sempre verão, escorreita e despreocupada, e que à noite tivéssemos sempre aqueles sonhos leves, a cheirar a verão.
Tínhamos noites perfumadas e manhãs resplandecentes. E vivía-se num entusiasmo de verão a preparação da festa da Senhora das Dores, com as novenas cantadas e a igrejinha minúscula sobrelotada : “ Estava a Mãe Dolorosa/ junt’ao pé da cruz chorosa/ enquant’o Filho pendia/ enquant’o Filho pendia. Mãe de Jesus trespassada de dores ao pé da cruz/ rogai por nós/rogai por nós/rogai por nós a Jesus”.
E a festa culminava com procissão faustosa, acompanhada pela música da filarmónica, um sol esplendoroso e muitos foguetes
À noite vinham as comédias ao ar livre, antes muito ensaiadas e partilhadas. Eram tão divertidas, estas comédias, tão a provocar-nos um riso genuíno e saboroso. Um riso adequado àquela Fajã.
Havia ainda os convites para provar o vinho mosto, acabado de fazer. E lá se ia em grupo animado, rumo às casinhas minúsculas e coloridas espalhadas pelas múltiplas canadas da fajã daquele tempo.
E cantava-se, cantava-se muito. Coisas aprendidas nas aulas de Canto Coral, tão bonitas e tão melodiosas e que ali ganhavam uma intensidade nova. Principalmente à noite, frente ao mar.
E que dizer dos polvos que os meus irmãos apanhavam? Eram mergulhadores afoitos, eles, a quem a fundura do mar não assustava. E que bem que a nossa tia cozinhava. Esses polvos..
Havia ainda a poça Simão Dias de que se falava com muito entusiasmo. E que era uma pequena maravilha, sim, mas para os felizardos que sabiam nadar. Eu contentava-me com a outra, que eu batizei de A minha poça.
Por quanto tempo iríamos ainda trazer o verão connosco? Porque naquele tempo não havia pressa em retomarmos as atividades escolares ( nós tão felizes e sem saber que o éramos!) e só retomávamos as aulas em outubro, quando aparecíamos aos olhos de todos, castanhos e a cheirar a verão.
E os grandes passeios em exploração daquela fantástica Fajã.? Nunca nos cansávamos de lhe explorar os mistérios E uma tarde, em pleno agosto, vivemos uma pequena aventura. Tínhamos descido até lá baixo para os lados do cais, onde há pouco tempo tinha sido montado um grande guindaste, motivo de interesse de muita gente. Mas a nós o que nos despertava interesse e curiosidade não era o guindaste. Antes, os sinais de vida que por ali abundavam, como búzios, pequenas conchas, pedrinhas bonitas e até às vezes, nos recônditos da rocha, lapas ali oferecidas a quem as soubesse encontrar.
No regresso a casa, vínhamos a atravessar o declive da entrada para o mar do cais, que era resvaladiça e cheia de musgos, quando vemos o meu irmão M. a rolar por ela abaixo a caminho do mar. A minha tia que estava connosco, de imediato se precipitou atrás dele para o apanhar. Foram momentos tensos porque, se receávamos pela segurança de um, passámos todos a recear pela segurança de dois. Mulher corajosa, a minha tia. Que deu boa conta do recado e conseguiu trazer de volta o M.
Foi um pequeno susto que serviu para alertar os mais pequenos para não se exporem a lugares perigosos.
Naquele tempo não se ia para a Fajã de carro: nem pensar. Ia-se a pé ou então de burrico, os pachorrentos burricos de então que, muito felizes, calcorreavam aquelas veredas escarpadas como se de há muito as conhecessem. Nós é que, às vezes, tínhamos pequenos sustos histéricos quando olhávamos lá para baixo e dávamos conta da fundura de vertigens, pronta a engolir-nos ao menor resvalo. Mas isso também fazia parte do encanto das Fajãs daquele tempo. Durante essas viagens parávamos algumas vezes para nos refrescarmos e ouvirmos o cantar da água das pequenas cascatas nascidas por entre as rochas.
Na maior parte das Fajãs de hoje há estradas largas por onde têm acesso carros mais a poluição que eles trazem, junto com o sacrifício dos homens que as construiram. Quantas delas poderiam contar-nos hoje estórias desses acidentes às vezes pagos com a vida.
Ainda trago bem fresca na memória um quase-acidente que por esses tempos vivi e de que, felizmente, saí incólume.
Em tempos posteriores, estando eu de visita a uma destas Fajãs, fui chamada com urgência às Velas. Bem se sabía da construção da estrada que se estava abrir e que há bem pouco tempo só era possível sair-se por mar. Mas também se falava da existência de um determinado sítio que já dava para passar: “Louvado, passa-se muito bem, pois então!” Mas chegada lá constatei, constrangida, como o espaço que me iria permitir a passagem para o lado de lá era reduzidíssimo, inclinado e resvaladiço. E lá muito em baixo, certas, reais, inequívocas, espreitavam-me as pedras escuras e ponteagudas dos calhaus. Mas eu obedecia a não sei que obscuros mecanismos e, naquele momento, só tinha um fito: passar por ali o mais rápido possível. E começo a pôr um pé, a seguir tento o outro…mas…, fiquei-me : queda, muda, estática, o medo começou a dar fortes sinais de vida dentro de mim, enquanto as primeiras pedras me começaram a rolar debaixo dos pés, e o piso se revelava de uma instabilidade assustadora. Que fazer?? Parar, dizia-me uma parte de mim. Parar, sim, mas desistir, nunca. Se os outros conseguiam, por que não eu?, sim porque não eu? E disponho-me a avançar com mil cautelas. Mas aí é que apanhei mesmo um susto daqueles que não se esquecem pela vida toda : de repente senti que ia ser projetada lá em baixo com aquela massa rochosa a desfazer-se-me toda nas mãos, pés e onde quer que me apoiasse. Nunca até então a morte me parecera tão perto nem eu tão à mercê dela. Subitamente dissiparam-se todos os vapores de raiva impotente e, quando depois de muitos esforços consegui desapegar-me daquela rocha traiçoeira, era eu já uma pessoa imensamente lúcida e, sobretudo, imensamente trémula e assustada.
Mas posso dizer-vos, com verdade, que as lembranças da boa e calma mãe-natureza das Fajãs de S. Jorge se sobrepõem todas a este susto de há muito.
Maria Luísa Soares *
- Escritora