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Ilha das Flores: Dia de poços e paradoxos

Fomos dar um passeio a pé ao Poço da Ribeira do Ferreiro e ao Poço da Alagoinha. O primeiro, mais espectacular, mais conhecido, hoje envolto em polémica. O segundo, muito bonito, embora menos espectacular, longe das polémicas e das vistas (salvo dos raros que lá vão e dos que olham com atenção para baixo, no Miradouro Craveiro Lopes), quase esquecido, hoje mais acessível, graças aos esforços da Juntada Fajãzinha — por nós, passeantes, continuados. A ideia da Junta, a que me junto, é a de que é um local que deve ser mostrado ao público.
Mas há aqui um paradoxo. Tal como o Poço da Ribeira do Ferreiro, este poço está naturalmente rodeado de terrenos privados, hoje asselvajados. Esses terrenos podem ser comprados, caso os actuais proprietários o desejem, e podem ser comprados por uma única entidade privada, que assim poderá, legitimamente, limitar o seu acesso, talvez com excepção dos caminhos de acesso, que de resto terminam a uma certa distância do poço. Tal como no caso do Poço da Ribeira do Ferreiro, essa entidade poderá nesses terrenos desenvolver o seu projecto, o seu Éden, o seu sonho. Mas serão estes sonhos privados compatíveis com o interesse público?
Creio que a ilha das Flores está numa encruzilhada. Preservada pela distância, pelo desconhecimento, por uma população cada vez menos numerosa, está a ficar cada vez mais sob os olhos, e os sonhos, e os interesses, do mundo. Muitos, mais uma vez legitimamente, virão tentar aqui construir o seu sonho, tal como eu vim. Mas não poderá o somatório dos nossos múltiplos sonhos privados redundar num enorme inferno?
Mais um paradoxo: o esforço de promoção dos Açores, e das Flores em particular, poderá resultar na sua destruição. Terão as Flores os instrumentos de gestão territorial necessários para limitar e orientar os nossos sonhos privados de forma a evitar o inferno? É uma velha história, repetida no nosso país e no mundo múltiplas vezes, a maioria das vezes com resultados trágicos. Não é claro o que fazer, e a breve trecho o problema colocar-se-á para cada vez mais lugares nas Flores e nos Açores.
Outro paradoxo é o da paisagem florentina actual, que amamos. Ao contrário do que dizem, e do que se promove, há muito pouca natureza intocada nas Flores. Não, não é uma ilha «pristina». Não é natureza pura, com raras excepções, aqui e acolá ao longo da costa e, sobretudo, no planalto central. O que vemos e amamos na ilha, com as excepções indicadas, é o resultado da intervenção humana, da introdução de espécies, de antiquíssimos arroteamentos, da agricultura e pecuária de séculos, que já alimentaram 12000 almas, e que hoje sustentam apenas muito parcialmente 3400 habitantes. Os velhos campos deixaram de ser amanhados. Asselvajaram-se, renaturalizaram-se, e assim se criou toda uma magnífica paisagem com plantas de todo o mundo, dominadas por um número ainda relativamente pequeno de espécies invasoras. E o paradoxo aqui é este: devemos restringir as alterações humanas a uma paisagem que, qual jardim abandonado, é relativamente recente (não chega a um século, em muitos casos) e é constituída essencialmente por plantas exóticas, parte das quais invasoras? Devemos regressar a uma paisagem mais humanizada, como existia antes do asselvajamento?
Outro paradoxo é que, se restringir o abate de árvores invasoras, também se está a restringir o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, também se está a pôr em causa o gozo pleno da propriedade privada. E fazê-lo de forma errada seria criar anticorpos, resistências, entre os próprios florentinos e os seus legítimos interesses. Tudo isto carece de uma extensa discussão, com participação de todos os interessados, mas sobretudo das autoridades, que no caso é o Governo Regional, e não é bom sinal que, no caso do Poço da Ribeira do Ferreiro, este mesmo governo tenha negado a existência de uma desarborização significativa (que, mais uma vez, não é necessariamente um mal, embora afecte significativamente a paisagem). Os instrumentos de gestão territorial que temos são suficientes para compatibilizar os interesses privados e os interesses colectivos? Se não, como me parece, como os rever? Como criar instrumentos que protejam a ilha que amamos sem tornar a vida de todos um inferno burocrático?
Nada disto é fácil, tudo isto é demorado, ninguém ficará integralmente satisfeito com as soluções que forem encontradas. Mas tem de ser feito. E, se todos temos de colaborar — cidadãos, empresas, Conselho de Ilha, municípios, ALRA — cabe ao Governo Regional o principal papel. Caso esta discussão não avance, caso melhores instrumentos não sejam criados, as Flores que conhecemos, hoje sob os holofotes do mundo, podem desaparecer. E o que as substituirá não será necessariamente melhor.

Manuel Menezes de Sequeira

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