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Diário da Ditadura – Recordar os coices da Burra Velha

Em Março de 2019, a meio do primeiro reinado do Imperador Trump, escrevi uma crónica para um jornal comunitário que mereceu uma critica muito dura por parte de uma senhora com quem eu já tinha até falado algumas vezes. Sendo um pouco mais velha do que eu e tendo imigrado para a Califórnia anos antes de eu ter cá chegado, a senhora sentia-se muito ofendida pelo modo como eu tratava o presidente. “Uma falta de educação”, dizia. “O presidente merece todo o respeito!” Naquela altura eu referia-me a ele pela alcunha de DDT – Destarelado Donald Trump. Sim, eu sei, destarelado é palavra que não deve existir no léxico português, mas foi a que eu inventei para dizer que o homem não tem tarelo. Comparava-o assim com o famoso produto químico que foi apregoado como o remédio para todos os males (tal como o Trump), mas que se tornou num flagelo, um perigo (tal como o Trump) contagiante para o ambiente e para os humanos.
O tema da crónica que agora reproduzo e que ficará também como parte desta coleção era para chamar a atenção para a conversa que o meu avô dizia ao seu empregado: Se te derem um coice, a culpa é de quem to deu; mas, se te derem um segundo coice, a culpa é tua, não aprendeste a lição. Era o que eu pretendia dizer aos seguidores do Culto trumpista nessa altura e é o mesmo que me apetece dizer agora. Se há por aí alguém que votou por Trump e agora sentem-se desiludidos ou traídos, pois que não tenham o descaramento de refilhar. A culpa é vossa, aguentem com as consequências. O pior é que todos nós, que não votámos nele, estamos a sofrer também.
E, minha amiga, continuo a pensar que este presidente não me merece respeito nenhum!

Os coices da “Burra Velha”

A entrada do “Café Rato”, na Calheta, em Santa Cruz da Graciosa, era lugar de convívio de pescadores, camponeses, baleeiros e outros trabalhadores.
Nas tardes lentas e cálidas de verão, o pessoal juntava-se mesmo à porta, traziam do interior, com consentimento do proprietário, alguns dos banquinhos de madeira e para ali estavam, a ver passar as horas. Discutiam de tudo, desde as notícias mais recentes do burgo, até às sempre litigiosas novidades do futebol, passando pelos temas que lhes diziam mais respeito… as caçadas às baleias, as Festas de Santo Cristo, que estavam à porta, os preços que a Adega Cooperativa ia praticar este ano e por aí além.
Alguns eram melhores ouvintes do que palradores. É uma arte antiga, saber ouvir e calar. Ninguém o fazia melhor do que o Ti João «das caninhas», um simpático velhote a quem a diabetes tinha roubado uma perna. Sempre com um sorriso nos olhos, o Ti João munia-se da sua bem afiada navalhinha americana e entretinha-se a cortar pedaços de canas e transformava-os nos pequenos palitos que o meu tio Nelson «Rato», o dono do Café, usava como cabos para os gelados que fazia à base de refresco Royal. Uma delícia para a rapaziada da Calheta… custavam apenas um escudo.
Mesmo em frente à porta do Café desembocava a Rua do Galeão. Seria uma rua como outra qualquer se não fosse pelas pessoas que ali residiam, um pequeno mundo dentro da família que era a população da Vila de Santa Cruz. Ti João também lá vivia, era até vizinho do Alexandre «Tiriri», outra simpatia de pessoa. Alexandre era cego de nascença, mas nunca se perdia pelo caminho e nem sequer tropeçava nas pedras da calçada, sabia chegar à porta de sua casa sem necessitar da ajuda de ninguém. Exímio tocador de viola, o «Tiriri» consolava-se a conversar com o meu avô «Rato» (pai do Nelson) e com o António «Traquitana», também ele morador na Rua do Galeão, mesmo ao lado da cocheira onde descansava o grande cavalo que lhe puxava a sua mercearia ambulante.
António «Traquitana» era bom homem e tinha um fino sentido de humor, arma que esgrimia com destreza nas conversas com o «Rato» e com o «Tiriri», levando mesmo este a admitir que “O nosso amigo António tem uma língua de prata”. João «das caninhas» movia a cabeça em sinal de aprovação.
Certa tarde, a tia Amélia «Rabiça» veio avisar o meu avô que algo de estranho se passava na cocheira da «Burra Velha». Era mesmo ali a meio da Rua do Galeão, um pouco acima da casa do Francisco «Pelicates», que ficava a casinha onde o avô Guilherme “Rato” guardava a sua companheira de andanças e de trabalho, a «Burra Velha», assim designada porque, embora alaricada e prezada, já estava entradota na idade e não gostava de partilhar a “casa” que sempre tinha sido dela com a nova aquisição do avô, a jovem e esbelta «Burra Nova». Coisas de burras…
O avô Guilherme ficou intrigado com a conversa da «Rabiça» e decidiu ir investigar o que se passava. Para tal, chamou o Alberto «do Ângelo», que estava a lavar pipas no granel, para o acompanhar. Não teve sorte, contudo. O Alberto recusou-se a cumprir as ordens do patrão e explicou, a manear a cabeça: “Ó sô Guilherme, ê na vou! Outro dia, quando me mandaste lá tratá delas, o diacho da «Burra Velha» atirou-me um coice disparatade! Sê na me desvi a tempo, ela partia-me uma perna! Má fogo a abrace, excomungada.” O velho «Rato» teve de ir sozinho apaziguar as burras. Descobriu que a desalmada da velhota tinha aberto a cancela do curral da noviça e andava atrás dela, a zurrar estridentemente e a ver se lhe mordia as orelhas.
Resolvido o problema, o avô voltou ao granel e confrontou o Alberto. “Tens que aprender a lidar com as burras, Alberto.” Perante o olhar espantado do moço, o ancião continuou: “Aprendi com o meu pai que, se um dia um burro te atira um coice, a culpa é do burro, por vezes eles são malinos; mas, se no outro dia o burro faz a mesma coisa, a culpa é tua, que não aprendeste a lição da primeira vez e não te puseste mais ao largo.”
Felizmente a briga das burras não deu muito que falar, não perturbou a pacatez da Rua do Galeão nem incomodou a vida das pessoas. Nessa tarde, como de costume, o «Traquitana» voltou da sua lide com a carroça cheia de galinhas que trocou, com as gentes das freguesias, por açúcar e petróleo e o «Tiriri», em vez de vir para o Café, deixou-se ficar sentado à porta de casa, a dedilhar umas modinhas na sua viola. Amélia «Rabiça» nem se deu ao trabalho de contar o acontecido ao marido, o Ti Chico «Buzina», não valia a pena. O alarido que a «Burra Velha» alevantou para que lhe dessem atenção, não surtiu efeito, ninguém lhe ligou pevide e só serviu para que o Alberto aprendesse a desviar-se dos coices.
“Isso mesmo, Alberto”, consolou-o o Ti João das «caninhas», “quanto mais longe das burras melhor…”

João Bendito

Lincoln, Ca. Fev.13, 2019

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