Parece que foi o outro dia.
Despedi-me dele à porta do seu escritório, como sempre fazia, mas o Senhor Professor já não me acompanhou à saída. Parecia que estava prevendo o que, em 2002, titulara no seu romance “Milhas Contadas” 1.
Há dias, encontrei por acaso, no interior desse livro que ele me ofereceu, o suplemento cultural RAIZ 2, com uma entrevista feita por mim, em agosto de 1979, aquando do lançamento do livro de contos e de crónicas -VINDE E VÊDE.
Assinalando os 25 anos da sua vida literária, Dias de Melo fala de si próprio, da sua obra, das influências literárias, dos amigos escritores, das suas preocupações sociais, etc. Decorridos 46 anos, vale a pena recordar o seu depoimento, publicado naquele suplemento cultural do “Correio dos Açores” coordenado por Emanuel Jorge Botelho e Osvaldo Cabral.
“Tenho orgulho em dizer que sou um escritor de intervenção”. Esta definição do próprio Dias de Melo comprova o objectivo de toda a sua obra.
No caso vertente, VINDE E VÊDE “é o homem de S. Miguel, fora da sua ilha ou seja, o migrante micaelense principalmente nas outras ilhas do arquipélago (…) nomeadamente no Pico e, muito mais restrito, na minha freguesia que é aquilo que conheço melhor”. E continuou: “Aqui nos Açores, aqui no Pico, pelo menos, ele de facto encontra uma vida um pouco melhor. Mas nem por isso ele deixa de continuar a ser explorado”.
Sentados no escritório de meu pai, junto à secretária, numa amena manhã de agosto, conversámos, despreocupadamente, sob o cheiro intenso a tabaco do seu familiar cachimbo. Dias de Melo não fugiu a nenhuma pergunta. Com a liberdade que assumia na escrita, falou de si, abertamente, e no final acrescentou: “Há uma insatisfação muito grande dentro de mim. Por causa das coisas que queria escrever e que já não tenho tempo de escrever. Uma insatisfação derivada, propriamente dos traumatismos que a gente sofreu no período da censura e que continua a sofrê-los agora de outra maneira.”
“Sou um escritor comprometido, não tenho vergonha de o dizer.
O escritor deve ser comprometido com o seu tempo e sou conscientemente com determinada ideologia, com o desejo de uma determinada forma de sociedade e vida. (…) Quanto a escolas literárias, nunca tive preferência por esta ou por aquela. (…) Se adiro à escola neo-realista faço-o em consequência das minhas opções e das minhas posições pois é talvez o neo-realismo que se casa mais com isso.”
E que influências recebeu, perguntei. “Se alguma recebi aqui [no Pico] antes de ir para São Miguel terá sido de Manuel Greves. É um escritor que pretendem atirar para o esquecimento e que não o merece.
Em São Miguel recebi influências mais de escritores do que propriamente das suas obras: Cortes Rodrigues e José Barbosa. José Barbosa era uma alma santa se é que há santos neste mundo. Convivia todos os dias com ele. (…) Tive dele alguma influência literária até de textos de revistas que ele escreveu. Há diálogos maravilhosos nas suas revistas. Alguns deles parece-me que Aquilino Ribeiro não teria nenhum pejo em subscrever. E era um homem que se preocupava muito com o povo.”
“De Cortes Rodrigues (…) há uma frase que ele me disse muitas vezes e me tem dado muito que pensar por isto: é que o caminho que ele seguiu só algumas vezes se encontrava com o que eu vim a seguir. Ele disse-me muitas vezes: -Você é que está certo.”
A nível nacional e sob o aspeto literário e ideológico, Dias de Melo menciona Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Soeiro Pereira Gomes, Assis Esperança, Fernando Namora. Com estes dois últimos o escritor açoriano trocou, frequentemente, correspondência. Depois de 1972 teve uma “influência muito grande de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Principalmente de Jorge Amado. Eu cheguei a dar comigo a tentar imitá-lo. Mas foi principalmente Aquilino Ribeiro.”
O escritor baleeiro, autor do Mar Rubro, Mar pela Proa e Pedras Negras, entre outros romances, novelas, contos, crónicas e narrativas afirmou então que “podia passar praticamente a vida toda a contar histórias de baleias e nunca mais acabava” . As influências baleeiras e o ambiente marítimo que perpassam pela maioria das suas obras advêm do contato com baleeiros e do “ambiente todo que me rodeou” na Calheta de Nesquim, sua terra natal.
Cidade Cinzenta, livro de contos e de crónicas sobre a cidade de Ponta Delgada, “Estilisticamente parece-me [ser] o livro que até agora [1979] escrevi mais bem conseguido” embora seja “aquele que teve menor aceitação da crítica”.
Este documento/depoimento circunscreve-se num determinado momento da situação social e política regional. Depois da publicação de Vinde e Vêde, o escritor publicou mais de uma dezena de títulos na editora Salamandra, patrocinadas pela Direção Regional da Cultura e uma recolha etnográfica de grande fôlego (3 Livros e vários volumes) a que deu o nome de “Na Memória das Gentes”.
Recuperar esta entrevista e recordar toda a obra de Dias de Melo no centenário do seu nascimento, é a minha simples homenagem ao amigo e grande escritor Açoriano. Como tantos outros ele entendeu que as estórias locais, quando bem contadas, também integram a literatura universal.
1 Dias de Melo, MILHAS CONTADAS, Edições Salamandra, 2002
2 RAIZ, Suplemento Cultural quinzenário do Correio dos Açores, Ano I-nº17, 12-08-79
José Gabriel Ávila*
*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com