Estamos numa semana em que todos os anos, desde 1974, nos vem recorrentemente à memória a canção de Sérgio Godinho que exalta a Liberdade recém-conquistada, composta imediatamente a seguir ao levantamento militar do MFA que, em 25 de Abril, derrubou a ditadura fascista. Nessa canção, Sérgio Godinho caracteriza a Liberdade não como uma condição política neutra ou absoluta, adquirida de um dia para o outro, mas como tomando partido e devendo ser progressivamente construída para se realizar e tornar num direito adquirido e defensável pela maioria dos portugueses.
Quando a canção preconiza que “só há Liberdade a sério” quando houver “a Paz, o Pão, Habitação, Saúde, Educação” está a dizer isso mesmo. Os amigos da guerra, da fome, da vida sem abrigo, da doença ou da ignorância, são naturalmente inimigos da Liberdade. A Liberdade tem assim, extensões para além da livre opinião e também limites, devendo estar vedada a quem, em seu nome e através do seu uso, pretender ofender ou prejudicar a Liberdade dos outros. Por isso se diz que a Liberdade para ser séria, tem de tomar partido.
Até à aprovação da nova Constituição da República em 2 de abril de 1976, desenvolveu-se em muito pouco tempo todo um processo de criação e de concretização das condições para que, em Portugal continental e insular, uma imensa maioria dos portugueses pudesse aceder de imediato ou progressivamente ao que durante a ditadura mais prolongada da europa lhes tinha sido vedado: o acesso à Paz, com o fim da guerra colonial (que já matara mais de 10 000 jovens, tornara inválidos outros 20 000 e traumatizara mais de 140 000); ao Pão, com a criação do salário mínimo e a melhoria geral dos rendimentos ou a criação do regime de pensões e proteção do desemprego; à Habitação, com o fim dos bairros de barracas e a criação de sistemas de facilitação do acesso à casa própria ou de renda; à Saúde, com a consagração do acesso universal e tendencialmente gratuito aos cuidados de saúde; e à Educação com a quebra acentuada do analfabetismo e a expansão em área e em idade do ensino obrigatório e gratuito, bem como da cultura.
Com o voto contrário do CDS, a Liberdade a sério de que Sérgio Godinho nos falava passou inclusivamente, e no essencial, a letra de lei na nova Constituição, legitimamente apelidada de Abril, até hoje.
Mas também até hoje, numa luta permanente contra aqueles que mantêm Abril por referência, os inimigos da Liberdade a sério nunca baixaram os braços para tentar amputar-lhe a essência, o mais das vezes com o suporte ou mesmo o incentivo de grandes interesses económicos e financeiros representados em alguns partidos políticos ligados ao poder, tendo conseguido várias vitórias parciais, muitas vezes em prejuízo direto da maioria da população incluindo daqueles que neles confiaram o seu voto.
Perdendo de todo a vergonha e revelando uma incontida sofreguidão pela apropriação privada da riqueza criada por outros que, graças à Liberdade a sério, pôde chegar à mão de muitos, chegámos ao cúmulo de assistir à aviltante figura de uma Comissária europeia ligada às finanças, ex-ministra do governo de Passos Coelho de má memória, Maria Luísa Albuquerque, propor a criação europeia de fundos privados de pensões para suporte financeiro do chamado “rearmamento” europeu, à custa de uma gigantesca operação de lavagem aos cérebros dos reformados, pensionistas e outros pequenos beneficiários da Segurança Social para de forma “dita rentável” desviarem para esses fundos as suas pequenas poupanças. Lembram-se do BES???
Exemplos destes alertam-nos para a importância de comemorar e lutar por Abril, pois esta é talvez a forma mais eficaz, de que não podemos nem devemos abrir mão, de defender a Liberdade que tanto nos custou a conquistar.
Mário Abrantes