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Plano regional para a pessoa sem-abrigo

O Francisco nasceu nos Arrifes, ali perto do centro histórico de Ponta Delgada, onde o turista agora paga a peso de ouro para usufruir do privilégio que é visitar os Açores, e o morador paga o mesmo para respirar. Desde novo, trabalhou com a família na faina, ao lado dos irmãos, primos, tios, e um pai lesionado, que perdera dois dedos num acidente em alto mar. Quando em pequeno se deitava no chão da sala, em frente à velha televisão onde naquele tempo só passava a RTP Açores, sonhava com outra vida, longe da sombra de uma cidade de doutores e bolores. Na escola, sempre se portou bem. Mesmo perante ameaças e tentações, nunca tocou numa peça de droga, nem pensou em fumar um cigarro e raramente bebeu álcool, ainda que nos dias de festa os tios o aliciassem a deitar abaixo duas bolas de vinho e um pico de aguardente da terra, para se fazer homenzinho.
Acabou o ensino obrigatório com notas acima da média regional, graças às muitas visitas que foi fazendo à biblioteca da cidade, para arranjar os livros que os pais não podiam comprar. Nos poucos tempos que tinha para si, escondia-se da família, para ler, refugiado num recanto seu. Por sua conta e risco, arranjou as papeladas todas e convenceu a mãe a assinar sem o pai sequer saber. Conseguiu duas bolsas de estudo, e uns apoios adicionais. Rumou à Universidade, seguiu o curso desejado, cresceu em altura e em conhecimento, enquanto se fez também adulto nas paixões e nos contentamentos. Quando regressou, o pai e a mãe já tinham morrido, de cansaço e lábios roxos, enterrados pelos irmãos. O negócio continuara com os tios.
Francisco decidiu que era ali que se reparariam velhos erros. Com o curso de gestão já feito, fez-se da pescaria um pilar nos Arrifes. Ergueu-se, ao lado do seu sangue, e em breve já exportavam peixe para outros horizontes. No espaço de algum tempo, a família passou a viver bem. E depois veio a primeira crise. Ele começou a beber muito, ao final dos dias. Fumava copiosamente, desde que um dia caíra em tentação nos passos perdidos da tal escola superiormente frequentada. As crises multiplicaram-se e os apoios não chegaram para a sua vida. Acabou a dormir no chão da sala, em frente à televisão, sozinho como dantes, apenas amparado pela garrafa vazia e a beata no chão.
Dali, passou para a rua, pois a casa teve de ser vendida para quebrar umas dívidas que contraíra com os irmãos. Viveu durante meses debaixo do frio dos Arrifes até arranjar novo trabalho. A droga, que ele nunca conhecera em jovem, era o que lhe guiava os dias, agora. Vendia quase tanto quanto consumia, refugiado no seu mundo, excomungado pelos familiares, embalado pelos químicos sintéticos. Nas brumas ainda guardava os sonhos e as páginas que tinham ficado por ler. Ainda mantinha o carinho e o gesto afável pelo próximo. Mas as mãos estavam encardidas e os olhos ensombrados pela sociedade que tinha falhado a um homem que subira a pulso, da faina para a faculdade.
Os trocos que lhe davam na porta do supermercado e no adro da igreja não chegavam para comer e consumir. Havia que fazer escolhas, e o vício raramente permite-nos ter compaixão por nós próprios. Andava esquelético, pela calçada velha do centro histórico, onde em pequeno tinha jurado nunca voltar. Francisco tentara fazer de tudo para não ser, mas a vida ensinara-lhe que nem o melhor dos corações está longe de algum dia vir a ficar sem um abrigo para viver.
Condenados como o da história que acabaram de ler, existem às centenas no nosso arquipélago. De acordo com o estudo que a Sra. Secretária Monica Seidi apresentou recentemente, são 386 pessoas sinalizadas como sem abrigo, sendo um problema social particularmente acentuado em Ponta Delgada. Apresentou a questão da toxicodependência como motor para tudo isto, ainda que permaneçam dúvidas, pois parece ser um assunto que deve ser ponderado em associação com o crescente índice de pobreza e exclusão, onde os Açores são ponta da lamentável lança. É certo que há um grave problema com consumos ilícitos, não deixando de ser igualmente certo que muitas vezes quem consome fá-lo para fugir a outros fantasmas, como a falta de dinheiro, o azar ou a própria doença.
Reconhecendo o problema social que se alastra pela nossa Região, a titular da pasta da Saúde e da Segurança Social, quando anunciou o número que referi, também anunciou um plano de ação para a pessoa sem-abrigo. Trata-se de uma estratégia que irá começar por Ponta Delgada, mas que se prevê passar ao resto do arquipélago. Não conhecemos, ainda, o detalhe na ação, podendo apenas manifestar algumas considerações sobre a iniciativa e sobre a sua execução.
Uma pessoa que ande na rua, como normalmente chamamos por cá, não é obrigatoriamente uma pessoa perigosa, nem um criminoso violento. A maior parte acaba por cometer algum tipo de ato ilegal, e são muitos os que resvalam para o ataque, enquanto condição necessária para se defenderem das desgraças aonde caíram. Todavia, uma pessoa que ande na rua é um ser humano que precisa de um olhar cuidado. Precisa de avaliações psicológicas, de trabalho na área dos comportamentos aditivos e de encaminhamento no que concerne à habitação social e às possibilidades de recuperação da dignidade de vidas passadas. Por isso mesmo, espero que o plano regional para a pessoa sem-abrigo, tudo faça para honrar a Humanidade que nos une, pois, todas e todos nós temos histórias de vida e não sabemos o futuro que nos espera.
Deixo uma palavra de apreço pessoal por esta iniciativa. Em tempos de extremismo e populismo, fica a esperança de que o trabalho que vai ser desenvolvido possa ser consensual e não sirva para alimentar os fogos dos ambiciosos aproveitadores de tragédias. Tal como na recente campanha promovida a favor da Inclusão de ideias e comportamentos, também aqui se reúne uma oportunidade única para mudar os Açores para melhor. Bem-haja à senhora Secretária, com a qual tenho algumas divergências políticas, tantas vezes injustamente apagada pelos homens que a rodeiam. Precisamos de mais mulheres assim.

Alexandra Manes

PostSriptum: por razões óbvias, o nome é fictício. A história é real.

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