“Como é consabido, a experienciação do culto festivo do Espírito Santo no arquipélago açoriano e desde o seu povoamento, está assente numa organização informal baseada numa contratação quase intuitiva.”
A democracia antes de constituir uma regra política – é uma regra pessoal. Assim é porque o indivíduo antes de se tornar social é-o primeiro no seu eu próprio. Toda a criança, nascendo entre indivíduos, é um deles em primeiro lugar como indivíduo; só depois é um indivíduo político quando percebe que para viver em sociedade tem de obedecer a um ímpeto de solidariedade entre as partes do todo para que este todo, que é a sociedade, funcione com segurança e estabilidade, ou melhor, que funcione de modo a proporcionar-lhe as condições mínimas de viver em conjunto. No fundo, tal como toda a matéria, o animal humano está sujeito a um caminho que está em constante construção em função de regras universais que transportam o homem biológico ao momento do seu nascimento consciente de si próprio.
Como é consabido, a experienciação do culto festivo do Espírito Santo no arquipélago açoriano e desde o seu povoamento, está assente numa organização informal baseada numa contratação quase intuitiva. Todos os anos o indivíduo organiza-se fora do espectro religioso e político, e realiza a sua mais primordial autonomia, a pessoal que se conjuga com outras de forma simples e sem chefaturas, nem hierarquias. A minha amiga Doutora Antonieta Costa, na sua tese de doutoramento de 1999, mostrou essa realidade pela primeira vez e única aliás porque não existe nenhum outro estudo nesta área científica. A sua tese é a de que se deveria aproveitar essa experiência e vivências antigas e transpô-las para a cidadania política. A transposição, já o demonstramos num estudo que escrevemos e publicamos os dois recentemente, e disponível na Amazon, não é possível de modo automático: 1.º, porque as raízes e os modos de fazer são muito específicos, e sobretudo as suas regras fundacionais; 2.º, e sobretudo, porque na política é estrutural a necessidade do contraditório e do processo. Ver, na foto recente, 26jun2025, ambos em diálogo sobre o assunto com moderação de Joel Neto, na livraria Lar Doce Livro, em Angra).
A ideia de aproveitar essa tão fecunda produtividade cultural – é original e merece ser estudada; isso é fácil. E seria importante o seu estudo, captar a motivação pela simbologia e traduzir isso em fórmulas para a cidadania política; isso é muito mais difícil. Em todo o caso, não sendo possível o ideal, façamos o possível. No esquema infra, percebemos o que está em causa e não é tanto a forma como ele funciona; mas a forma como se poderia aproveitar essa força, histórica e social, das populações quanto a uma idêntica participação na vida cívica e política. Isto é, aproveitando essa força social transformando-a também em força política.
É sabido, nas palavras de Francis Fukuyama, que «as instituições políticas desenvolvem-se ao longo do tempo, geralmente de forma lenta e dolorosa… existe qualquer coisa como uma lei da conservação das instituições». Perante uma sociedade que esteve meio milénio relativamente abandonada, e afastada dos cânones da verbalização política, é natural que a população seja pouco participativa na ação política, quase restrita ao mero ato de votar.
Mas se a democracia açoriana tem meios de atender às mais variadas necessidades das populações, incluindo em investimentos e políticas, nomeadamente na cultura e na religião, na agricultura e em milhentas matérias – por que motivo não podemos investir na qualidade da cidadania política? Aliás, uma cidadania melhor instruída e preparada tem sempre efeitos multiplicativos na economia dos recursos; porquanto a ignorância, a inaptidão e o desinteresse pelas causas públicas são sistematicamente indicadores de políticas de desperdício e de manutenção de políticos fracos e, portanto, duma democracia enfraquecida.
A solução natural e urgente o melhoramento da democracia é a mudança do sistema de governo de maneira a construir, muito rapidamente, um sentimento de que o povo é ouvido e escutado e, nessa nova realidade, isso provoca a intervenção e o interesse. A par disso, dado o nosso atraso estrutural, junte-se vários programas de incentivo à verbalização do saber político.
Arnaldo Ourique