“O agora famoso apagão ibérico não foi apenas um tropeção técnico. Foi um alerta vermelho, com implicações muito sérias. Onze horas sem eletricidade, atualmente, é impensável. Mete em risco hospitais, paralisa transportes, pagamentos, tudo e mais alguma coisa.”
A eletricidade é o oxigénio da sociedade. E a 28 de Abril de 2025, a península ibérica deixou de respirar.
Caro leitor, sabe o que é uma bicicleta Tandem? Eu também não sabia. Mas depois de pesquisar no Google “bicicleta com vários lugares, mas só um guiador” descobri que é a nomenclatura técnica atual para bicicletas de casais pirosos. Agora que já sabe, retenha a imagem – vai ser importante. Porque é exatamente assim que funciona a rede elétrica europeia: uma enorme bicicleta composta por ciclistas com formas de pedalar muito diferentes.
O agora famoso apagão ibérico não foi apenas um tropeção técnico. Foi um alerta vermelho, com implicações muito sérias. Onze horas sem eletricidade, atualmente, é impensável. Mete em risco hospitais, paralisa transportes, pagamentos, tudo e mais alguma coisa. Provavelmente todos os utilizadores de iPhone ficaram sem bateria veja lá. E urge saber: O que aconteceu? Pode acontecer novamente?
Vamos, então, imaginar a rede elétrica como uma bicicleta Tandem gigante. Cada ciclista nesta bicicleta representa uma forma diferente de produzir eletricidade. Uns pedalam com persistência e fiabilidade. Outros… é conforme o tempo. Pois bem, para esta bicicleta andar bem, todos os ciclistas têm de pedalar ao mesmo ritmo. Independentemente de ser uma subida ou uma descida esse ritmo tem de ser 50 rotações por segundo (os famosos 50 Hz). Se os ciclistas aceleram demais, a bicicleta fica descontrolada. Se abrandam, começa a chocalhar por todos os lados. A frequência tem de estar sempre estável. Sempre!
Os ciclistas nucleares, a carvão ou gás são os musculados cheios de dinamismo. Não precisam de descansar. Pedalam que se fartam, com força, ritmo e foco. São excelentes, raramente se queixam, mas… Dão muitas bufas. E ninguém gosta de cheirar bufas. Não queremos viver num sítio que cheire a bufa. Bufas é para acabar se faz favor.
Já os ciclistas solares e os eólicos são outro campeonato. Nem soltam um traque. O problema é que só trabalham quando lhes apetece, são completamente imprevisíveis. O solar, quando está bom tempo. Se é de noite, dorme. O eólico? Ao sabor do vento: Algumas vezes em sprint entusiasta, outras nem aparece. E como se não bastasse, pelos vistos têm um belo sindicato. Não obedecem a ninguém, fazem o que querem, quando querem, e não são de confiança. Não se pode contar com eles para, sozinhos, manterem a pedalada constante. A musculatura impressionante dos nucleares e amigos é tal que, mesmo que parem um bocado para beber uma aguinha, a bicicleta ainda consegue andar um bom bocado graças ao embalo. Isso é o que se chama inércia síncrona em termos de redes elétricas. Os outros, se estiverem a pedalar sozinhos, levantam o pezinho e no mesmo instante a bicicleta para. Zero tolerância.
No dia 28 de Abril, por volta das 11:30, o céu estava tão limpo como uma casa de família em Ponta Garça. Sol de rachar. Zero nuvens. Um dia perfeito para a energia solar. E por aqui começam os problemas.
Espanha nos últimos anos, contratou um batalhão de ciclistas solares, e nesse dia estavam todos na Tandem, cheios de “ganas”. A bicicleta ibérica praticamente só era movida por eles. Havia tanta energia a entrar na rede que o preço no mercado desceu a pique – produzir energia, naquele momento, custava dinheiro. Resultado? Os ciclistas musculados (nucleares, carvão e gás) entraram em greve. “Eu não pedalo de graça”, alguém ouviu dizer.
Em Portugal, a música que andava a tocar era outra. Por cá, despedimos quase todos os ciclistas musculados. Anunciamos com orgulho: “A nossa bicicleta não dá bufas!”, “100% pó de fada”. Esqueceram-se foi de referir um pequeno detalhe técnico… A maioria dos nossos ciclistas são espanhóis. Portugal recebe regularmente eletricidade de Espanha. Nos dias de muito sol, como o glorioso 28 de Abril, os nuestros hermanos solares, produzem tanto que excedem a procura. Não se esqueça. Sempre no mesmo ritmo! Exceder a procura é o mesmo que uma descida muito ingreme, a tal frequência sobe. Não pode! Como resolvem este problema? Enchem os reservatórios superiores das barragens, armazenam a energia que podem. E o resto? Praticamente oferecem aos Tugas. Pessoal porreiro, você diz. Mais ou menos. É como um vizinho que lhe oferece todos os dias araçás. Adiante. Afinal o que se passou? Em França, fecharam a estrada que subia. Perceberam que alguma coisa se passava com a bicicleta espanhola. Era preciso uma mudança urgente de declive. Os ciclistas solares, completamente descontrolados, os musculados (capazes de manter o ritmo) em greve. E de súbito, 15 GW- sim quinze mil megawatts- saíram da rede. O pessoal do sol, sem causa aparente, parou de pedalar. E a bicicleta espanhola estatelou-se no chão. Portugal, que vinha de reboque, gritando “não bufamos! não bufamos”, nem teve tempo de perceber o que se passava. Mesmo que tivesse, não tínhamos músculo nem travão para aquele embalo.
Moral da história: A transição energética é urgente. Fundamental. Necessária! Mas é um campo de minas – cheio de boas intenções, painéis solares e muito pouca inércia. Sim, queremos um mundo sem bufas. Mas isto só vai acontecer com gente independente e competente ao volante. Já agora, entre nós, deixo aqui uma confissão. Eu acho que as bufas nucleares não cheiram assim tão mal…
Philip Pontes