A ausência do gato no cânone bíblico: dados arqueológicos, linguísticos e culturais
Num contexto em que o gato doméstico ocupa um lugar cada vez mais preponderante no afeto humano, seja como animal de companhia nos lares, seja como figura recorrente na cultura digital e mediática, surpreende constatar o silêncio, quase absoluto, a que a Bíblia o devota. A questão não surge apenas de um bizarro e original interesse, remete-nos para a forma como as sociedades antigas hierarquizavam os animais, distinguindo aqueles que mereciam inscrição textual, valor ritual ou utilidade económica, daqueles cuja presença se mantinha periférica. A ausência de referências explícitas ao gato nas Escrituras contrasta, assim, com o estatuto central que este felino adquiriu no imaginário contemporâneo, convidando a uma reflexão mais ampla sobre os critérios culturais, linguísticos e religiosos que moldaram a representação do mundo animal na tradição bíblica.
Na Bíblia hebraica não há uma palavra inequívoca para «gato doméstico», este animal não é mencionado em nenhum livro do cânone judaico. Em contraste, leões, raposas, cães, ovelhas e bois aparecem repetidamente porque tinham peso económico, simbólico ou ritual. Este silêncio não é casual: reflete o lugar (muito modesto) do gato nas economias pastorais de Israel/Judá da Idade do Ferro.
Os dados zooarqueológicos e genéticos indicam que, embora a relação homem-gato tenha raízes neolíticas no Crescente Fértil, a grande expansão do gato «doméstico» como animal de companhia e de navio acelera sobretudo na era clássica (períodos helenístico e romano). No Levante da Idade do Bronze e do Ferro, evidências de gatos em contexto doméstico são escassas e, quando surgem, não se ligam claramente a lares israelitas. Em suma: quando os livros bíblicos se fixam, o gato ainda não tinha «entrado» no quotidiano israelita como entrará mais tarde no Mediterrâneo romano.
A Bíblia privilegia animais com função alimentar, sacrificial, laboral ou simbólica direta na vida de Israel (ruminantes, aves domésticas, asnos e cães) Os gatos não eram alimento nem oferta, não puxavam arado, não serviam como animal de carga, por isso, não entram na legislação cultual nem nas listas rituais que estruturam tantas passagens dos livros religiosos. Acresce um fator linguístico: os termos correntes para gato (hebraico rabínico atúl, aramaico shunrá) são posteriores e de circulação talmúdica, não pertencendo ao léxico do hebraico bíblico.
No Egito faraónico, Bastet era uma deusa, representada como um gato ou com cabeça de gato, associada à proteção, fertilidade, alegria e música, protetora da família e do lar. Já em Israel/Judá não vemos esse investimento cultural. A Bíblia, com a sua forte pulsão anti-idolátrica, não tinha qualquer interesse em importar um animal carregado de associações cultuais alheias, e preferiu ignorá-lo. Note-se: isto não implica uma “hostilidade” judaica ao gato; apenas distância cultural.
Há traduções cristãs do deuterocanónico, como a Carta de Jeremias, geralmente impressa como Baruc 6, que mencionam gatos ao ridicularizar ídolos cobertos de fuligem: morcegos, andorinhas e aves pousam sobre eles; e também gatos (Bar 6,22,). Porém, esta obra não integra o cânone judaico, por pertencer ao corpus grego/latino deuterocanónico. Por isso, não contradiz o silêncio da Bíblia Hebraica.
A literatura rabínica já conhece bem os gatos: o Talmude louva a “modéstia” do gato (pela limpeza), discute danos que pode causar, e reconhece a sua utilidade no controlo de roedores. Os termos atúl (hebraico pós-bíblico) e shunrá (aramaico) surgem frequentemente, o que confirma que, nos séculos romano-tardios e sassânidas, o gato já fazia parte do ambiente doméstico judaico.
Em síntese, podemos referir que a ausência de gatos na Bíblia hebraica resulta da convergência de alguns fatores: o gato ainda era um animal marginal no Levante quando os textos bíblicos se consolidam; não tinha função alimentar/sacrificial/laboral que justificasse menções normativas; a distância cultural criada pelo judaísmo face ao modelo de religiosidade do antigo Egito. É de notar que quando a cultura hebraica entra plenamente no circuito mediterrânico, o gato aparece com naturalidade, sendo matéria do Talmude, não da Bíblia.
Portanto, pode dizer-se que tanto a Bíblia hebraica como o Novo Testamento não fazem referência a gatos, assim, o silêncio dos gatos nas Escrituras é tão eloquente quanto a sua presença nas nossas casas, sendo o gato é um enigma cuja solução não existe.
Henrique Levy *
- Poeta e ficcionista