Num recente texto sobre a necessidade de instaurarmos na autonomia política constitucional um sistema de governo leal à propositura da Constituição portuguesa determinar a democracia nas regiões insulares do país, e falando na centralidade de São Miguel contra a Lei Fundamental e contra o ideário da autonomia política construída nas bases da revolução dos Cravos – solidariedade entre as populações, liberdade e democracia – dissemos «felizmente, a Terceira com a sua matriz cultural e cidadã continua sendo o baluarte açoriano da autonomia açoriana portuguesa porque o país foi construído com parte significativa do seu sangue e da sua história». Noutro ensaio dissemos que «Os terceirenses odeiam esta ideia de que Ponta Delgada é a capital política dos Açores. Assim como os micaelenses odeiam-na também. Mas a motivação de um é diferente da do outro. A elite terceirense, eminentemente cultural, algo religiosa, imensamente idealista e medianamente política, não aceita uma capital pelos pergaminhos da sua história. A elite micaelense, eminentemente empresarial, profundamente religiosa, imensamente realista e ativamente política, não aceita porque tem medo de os terceirenses se revoltarem e assim incomodar ou perder este tipo de autonomia política centralizada em São Miguel. Os terceirenses não aceitam, mas não fazem nada por acomodação; os micaelenses não falam nisso porque têm medo da espiritualidade dos terceirenses que, artistas de salão, tanto são mansos como podem guindar forças em altos brados. Nesse medo de um e outro sobressai a elite micaelense que, a troco de governosfracos, mantem a elite terceirense acomodada. As elites das restantes ilhas são em tudo idênticas no não querer, divergindo a motivação».
Num autor micaelense citado no ensaio identificado, depois de dizer a identificar com admiração Angra do Heroísmo em 1961, num outro texto dizia o seguinte: «Ponta Delgada foi durante quatro séculos somente uma cidadezinha de tipo colonial, pacata, puritana, de costas voltadas ao mar, sem vocação para capital de coisa nenhuma. Não tem a presença senhorial de Angra do Heroísmo, nem a graça modesta de Vila Franca do Campo.»
Já em tempos mais recuados também se atestava a mesma matriz das gentes da ilha verde nas palavras do grande açoriano micaelense Antero de Quental em 1874: «Escrevo-lhe da Terceira. Aqui nos Açores há um provérbio que reza: «São Miguel, burgueses ricos; Terceira, fidalgos pobres; Faial, contrabandistas espertos». Com efeito, a Terceira é uma terra essencialmente portuguesa e peninsular: fidalguia, pobreza, toiros, descuido sóbrio e filosófico, entusiasmo, bizarria e parlapatice: numa palavra, os defeitos e as qualidades correspondentes do idealismo peninsular (…) É o quanto para que você compreenda quanto tenho gostado disto, eu que de dia para dia me vou sentindo mais português, mais descubro em mim a fibra nacional e mais preciso pôr-me em comunhão com a alma coletiva. Isso é quase lírico de portuguesismo, mas tem desculpa em quem sai de São Miguel (…) o menos português de quantos cantos do mundo onde se fala a língua de Camões. Fique sabendo que exultei ao pisar terra que diz alguma coisa à minha alma histórica e que com ela se afina tanto mais quanto desembarquei no dia 22 de junho, dia histórico nos factos da regeneração portuguesa (22 de junho de 1832)».
A matriz da mentalidade das populações das ilhas são conhecidas de todos quantos a estudam e acompanham, se bem que esse saber é político, não tanto científico. Assim como se percebe um homem pelo que veste e come, como fala e como pensa, de igual sorte se percebe os ilhéus, o homem ilhéu e a mulher ilhoa, e as ilhas e populações. Cremos que a generalidade das pessoas concordará nos seguintes termos: os terceirenses, de onde venho e estou constantemente, sempre tiveram na guelra um sentimento mais patriótico, di-lo a sua história extraordinária nos anais das ilhas e do país, e di-lo ainda a manutenção de tradições portuguesas que na Terceira são um depósito vivo de cultura. E quanto às restantes? Das nossas posses diremos o seguinte: pouco sabemos das populações do Corvo e St.ª Maria; em 1831 aderiram ao liberalismo imposto pela Terceira; nos últimos anos denota-se uma aproximação ao centro. Existe uma matriz coletiva bastante coincidente no centro do arquipélago, nas ilhas Terceira e Graciosa, São Jorge: esta resistiu ao liberalismo, mas depois tornou-se polo importante; e Pico, também um pouco resistente ao liberalismo. As Flores e o Faial são silenciosas no seu ser, não sabemos se pelo receio que mostram: as Flores em 1919 ofereceu-se para venda ao governo dos EUA, mas tinham aderido facilmente ao liberalismo; o Faial nunca quis a autonomia administrativa distrital, aceitou em 1832 porque era para todo o país, não quis aplicar o Decreto de 1895 quando ao país quis manter a autonomia administrativa distrital apenas nas ilhas e Salazar obrigou-a a aceitar em 1840, mas foi uma ilha inteiramente liberal. São Miguel sempre quis a sua independência das outras ilhas, e saiu-lhe a sorte grande com a autonomia política constitucional: pôde finalmente governar-se a si própria, sobretudo a partir de 1998 usando títulos e património das outras ilhas e na marca Açores; foi ferozmente contrária ao liberalismo, mas acabou por aceitar por imposição da Terceira numa batalha memorável.
Hoje – as ilhas não vivem como ilhas de democracia. São ilhas de coesão. Agora em autonomia constitucional são escravas dum futuro no qual não podem participar: porque a elite de São Miguel não permite e porque a Constituição, embora preveja a salvação dos ilhéus, ao mesmo tempo, por inércia dos políticos e devido à fraca e compreensível cidadania política, está a permitir a escravatura política das populações insulares.
Arnaldo Ourique