Após 123 anos, persistia ainda na lembrança dos terceirenses a chegada à ilha de um outrora poderoso Gungunhana, rodeado de um séquito também ele despojado de poder e deveras assustado, depois dos três meses passados no forte de Monsanto. Jamais esqueceriam como tinham sido “exibidos” de forma tão pouco dignificante. De que mais seriam capazes estes colonizadores?
Reunidos no Agora deste 2024, Gungunhana e os companheiros daqueles tempos que, como ele, tinham sucumbido à lei da mortalidade, ei-los que recordam os momentos dessa vida antiga, agora trazida para o presente destes ainda vivos, gente que parece tudo saber, e por isso tudo julga segundo as suas leis.
- A cara deles quando nos foram buscar ao barco e nos viram todos no mesmo camarote, quase em cima uns dos outros, muito juntos! Os palermas nunca souberam que era o medo das águas do mar o que nos punha naquele estado e não o exílio para onde nos levavam!
- Como também nunca perceberam por que sempre nos recusávamos a comer peixe.
- Mas atenção porque acaba de entrar o Mouzinho de Albuquerque Vem mesmo agitado, e não o disfarça. Mas tinha que vir e fazer ouvir a sua voz , não fossem estes empanar-lhe o prestigio (como se não bastasse a notícia de há pouco de que uns fanáticos lhe tinham desfeito a estátua! Uma delas porque felizmente outras persistem desafiadoras sobre o pedestal que as suporta). E precisamente: acaba de apanhar o resto de uma frase:
- …pois vem.. vem o Mia Couto! Aí está um dos que honra a sua terra e a nossa raça!
- Ai honra, honra! Que raio de escritor ele me saiu quando só fala de uns pobres coitados que de heróis não têm nada. E acrescenta dirigindo-se ao Gungunhana comodamente instalado e rodeado das suas sete mulheres: Tu, por exemplo, conhecido pelo Terrível e pelo Invencível, ,acabaste meu prisioneiro em Chaimite. Quem foi o herói aqui, diz- me?
- Ah Mouzinho mauzinho! Que percebes tu de glória! Que percebes tu de heroísmo?, tu que sempre andaste mandado e sempre comandaste exércitos risíveis! Tu que nunca provaste a glória tamanha do poder e do que com ele se pode fazer. Ah, o gozo, a glória que foi brincar por algum tempo com as duas potências coloniais da época, Portugal e Inglaterra! Sim, é desta massa que se fazem os heróis.
- Tempos difíceis para o pobre do major Caldas Xavier ou o António Enes…, acrescenta Molung, tio de Gungunhana. O Leão de Gaza ia entretanto recebendo embaixadas de Portugal, se bem te lembras…
Mas Mouzinho não desarma: Há-de servir-te de muito teres sido Imperador de Gaza. Acabaste exilado numa ilha perdida no Atlântico, a Terceira. Foi bom, ãh, gozaste muito por lá? - Pois ficas a saber que fui sempre bem tratado. Aquela gente tinha por lema connosco amenizar-nos a vida tendo em conta a” tristeza do exílio”. Eu até usava a minha coroa de cera quando me apetecia, olha até ia caçar coelhos lá pelo Monte Brasil quando me dava na real gana…
- Ah as comesainas que fazíamos com eles!
- E as bebedeiras póstumas!
- Também ouvi dizer que vos tiraram as vossas mulheres e que as mandaram para Cabo Verde. ..Desgraçados! Não queria estar-vos na pele…. Viver sem afetos é mesmo exílio a sério.
- Sem afetos? Dávamo-nos bem com todos. Além disso íamos uma vez por semana à casa de alterne.. Ah, não sabias…
Mas parece que Mouzinho. de Albuquerque está a entrar numa de fastio a julgar pelos bocejos. - Nada do que tu digas anula o facto de o nosso Gungunhana ser o símbolo da resistência africana contra o colonialismo europeu, espicaça-o ainda Zixaxa, sempre altivo e provocador.
Quanto a Mouzinho , um último bocejo e um último jorro de desprezo, para depois se afastar até junto de quem lhe merecia a companhia:
Sois uns desgraçados| Até nem falar sabíeis. E como era delicada e divertidas a vossa higiene matinal! Sim, a maneira original que usáveis para lavar os dentes! E a língua, com que força a esfregáveis! Talvez para aprenderdes a falar como gente civilizada! Ah, ah, ah!
Mas mal o Mouzinho se afasta, cai-lhes a máscara, a começar por Zixaxa e Godide.: Estes brancos hão-de ser sempre uns estupores convencidos. Uns cabrões de merda que nos obrigaram a deixar de ser o que éramos para anos “civilizarmos”, diziam eles. - Nós, os heróis moçambicanos da resistência africana!
- Vestir-nos à europeia!, alfabetizar-nos! Até fazer-nos adotar a religião deles
- A paródia que foi aqueles batizados!
- Conhecem algum Reinaldo Frederico? Eu cá não.
Todos a concordar que tinham era ficado mais pobres, despojados da alma que os identificava. A falta que lhes fazia as enormes extensões a perder de vista e aquele sol tão único que explodia no silêncio das madrugadas! Ah como sabia bem sucumbir à vertigem do calor e da. cor!
E Gungunhana a acrescentar: A mim o que me dava alento em certos dias difíceis era a lembrança da nossa Gorongosa e dos incríveis animais que a povoavam. E à noite ouvir, à luz de fogueiras e tambores, as nossas danças: uma orgia de labaredas quentes que a voz do batuque ritmava! - Oh sim, eu próprio dava vida a essas danças, em que uma oculta força nos requebrava os corpos suados. Dançávamos como se exorcizássemos do mais fundo de nós um estranho mal que desde nascença nos perseguisse!
- Ah como sentíamos então o explodir da servil mordaça com que os branquelas nos faziam carregar!
Assim irmanados num estado que lhes era comum, escolheram o silêncio como forma de apaziguamento, silêncio que não durou muito, pois que se ouve a voz de Molungo: - Nós, vencidos? Mas se até fazíamos uma vida normal lá na fortaleza de S. João Baptista. Com o andar do tempo movimentávamo-nos pela ilha toda. Pergunta lá ao teu filho e também aqui ao Zixaxe como se arranjaram eles para deixarem descendência na ilha.
- Pois,… temos lá culpa de sermos bonitos. Bonitos e desejados…
- Quanto a ti, Gungunhana, também fizeste sucesso por lá. Estou a lembrar-me de ti com aquele chapéu de abas, que ficou conhecido pelo chapéu de abas à Gungunhana e que foi moda durante algum tempo.
- Entretanto, impossível ignorar o ar reprovativo de Molungo que os envolvia a todos: Mas continuo a achar que foram cedências a mais . as que vocês fizeram. Branco nunca foi de confiança!
- O que mudou, mudado está companheiros, E há que reconhecer que esta gente, os terceirenses foram muito mais humanos do que os continentais que nos receberam com um espalhafato impiedoso.
- E tu, Zixaxa, que foste o último a morrer, tens tido notícias da tua Maria Augusta ? E do teu filho Roberto?
Maria Luísa Soares*
*Escritora