Conta-me a minha parceira de vida coisas da sua família.
Dos seus tempos de filha única durante nove anos, quando tinha a atenção desmedida da avó Angelina para lhe desenriçar as tranças; das viagens de férias para casa da outra avó, no Faial; do aprender a nadar no varadouro do Porto das Pipas; do pedinchar aos pescadores da Madeira pedaços de cana-de-açúcar que chupava, descontraída, sentada na soleira da porta e até mesmo do correr nas ruas do Corpo Santo, a fugir do misterioso «Fifi das Flores»…
Já não sei como, ontem, ao jantar, recordou-me estórias do tempo em que a família dela viveu na Terra Chã, a simpática freguesia da ilha Terceira tornada famosa pela pena de um dos melhores escritores açorianos da atualidade, o Joel Neto. Descreveu-me (mais uma vez!) muitas das peripécias da sua meninice naquele lugar. Falou-me das amigas com quem ia e vinha da escola, das correrias a esconderem-se, não do «Fifi» mas do «pretinho do Hospital», o senhor cozinheiro que era uma paz d’alma, mas só porque tinha a cor da pele diferente dos outros homens, causava-lhes medos e sustos; das incursões furtivas aos pomares das redondezas onde, ela e as amigas mais aventureiras, se metiam a roubar laranjas e nêsperas. E arrepiou-se ao relembrar o descarado do galo que a perseguia, pelo quintal, aos nicos nos calcanhares, causador de fobias que ainda não se dissiparam.
Passados que são mais de cinquenta anos, pensa a senhora minha dona que a razão da mudança e da vivência na Terra-Chã terá tido origem na oportunidade do pai poder trabalhar o enorme reduto atrás da casa e assim usufruírem de produtos alimentares que ajudariam a atenuar as despesas de mercearia. Criavam um porco, tinham um curral bem povoado de frangas e galinhas poedeiras e apanhavam, em abundância, tomates, alfaces, couves e tudo o mais que a terra lhes dava. Para mais, nem precisavam comprar leite. Não tinham vacas suas mas o proprietário da casa, o popular Ti José da Lata, quando tinha as suas no serrado ali ao lado, deixava-lhes uma canada do precioso líquido, ainda quentinho e a espumar, derramado da sua famosa lata.
Admirava-se a Alice, menina e moça, por que seria que aquele homem cantava enquanto ordenhava as vacas…
De todas estas recordações, uma que ela retém como mais engraçada era quando a mãe, no balcão da casa, gritava para o marido, quando ele saía para o trabalho: “Óh Renato, não te esqueças de comprar remédio para os caracóis!”.
Remédio??? Os caracóis pareciam até muito saudáveis, consolavam-se a comer as viçosas couves, o que deixava a minha futura sogra, também Angelina de nome, desesperada e apoquentada.
Faço avançar a Roda do Tempo. Longe da pacatez da Terra-Chã, a viverem mesmo na intercepção de duas das mais movimentadas ruas de uma cidade californiana, valia-lhes o facto de terem, atrás da casa, um pequeno quintal, restos de um possível pomar que ali terá existido. Ainda lá estava um armazém desativado e… uma «casinha» que, felizmente, também já tinha passado à reforma.
Renato tinha muito orgulho no seu quintalinho americano. “Vê só o tamanho destas favas! É cada vagem que mete medo. Foi o José Tomazinho que me deu as sementes.” Sem o benefício de adubos, parecia que aquela terra produzia milagres. Os tomates eram dos mais gostosos que já comi – “O meu primo «Cabeleira» é que me deu uns pezinhos” –, as couves, essas eram um assombro, com folhas largas e enrugadas, maiores que pratos de sopa. Áh, já me ia esquecendo de vos contar, o Renato até uma cabrinha criou, num curral que armou mesmo ao lado da garagem. Quando deu por isso que estava a gastar muito dinheiro em ração, vendeu a cabra a um mexicano, para desgosto das meninas netas, que gostavam de lhe fazer festinhas na testa.
Ora bem, com o passar dos anos, as dores nos joelhos e o alargamento da barriga não permitiam ao Renato, meu sogro, dedicar muita atenção à horta. Foi a santa da esposa que experimentou armar-se em camponesa e plantar uns pés de couve que uma amiga da igreja lhe dera. Contudo, um mistério começou a acontecer: quando a Angelina chegava junto ao rego para botar uma pinguinha de água, notava que, todos os dias, havia menos plantas nas covetas. Parecia que desapareciam pela terra abaixo!
“São as malditas das «gôfas» que me andam a comer as couvinhas!”, descobriu a santa senhora. Era verdade, a pequena horta tinha sido invadida por umas famílias de toupeiras. Angelina, que no seu antigo quintal na Terra-Chã nunca vira semelhante animal, resolveu dar cabo delas o mais depressa possível. O primeiro passo foi pedir ao marido que fosse à loja comprar um saco de veneno. A coisa não resultou, cada vez havia mais buracos na terra, o veneno devia ser igual ao remédio dos caracóis de antigamente. Desesperada, decidiu seguir o conselho de uma amiga: “Bota-se água pelos buracos abaixo, elas morrem afogadas”, recomendou a Maria Nóia.
Parece que ainda a estou a ver, de bata estampada, sapatos velhos no pés, a cabeça coberta com um lenço vermelho amarrado na nuca. Armada com um pau pontiagudo numa mão e a mangueira na outra, aquilo é que era despejar aguaceira em tudo o que fosse buraco. O pau seria para enxotar os noctívagos roedores, se é que algum se aventurasse a pôr a cabeça fora da terra.
Pobre Angelina, perdeu a batalha. Convenceu-se que mais prático era deixar as toupeiras comerem o que restava da sua plantação e não gastar mais dinheiro em água ou em venenos. Ficou o quintal ao abandono, as forças já eram poucas e as couves, no Safeway, não eram assim tão caras…
Hoje, aqui perto de casa, vi uma toupeira, de papo para o ar, dentes arreganhados, sem vida.
Lembrei-me da santa da Angelina. De certeza que anda, lá no Céu, de mangueira na mão, a dar cabo delas. E não me admirava nada se, no celestial serrado, ela encontrasse o Ti José da Lata, a cantar «A Favorita»:
… Eu já fui alegre e cantei
Alegre e cantei, agora estou desta sorte
Já fui o retrato da vida,
Retrato da vida, agora serei da morte.
Lincoln, Califórnia, Fev. 4, 2018
João Bendito