A aviação regional nos Açores não é apenas um meio de transporte. É um pilar funcional da coesão territorial, uma extensão do direito à mobilidade, e uma ferramenta estrutural do desenvolvimento económico e social do arquipélago. O modelo actual, assente nas Obrigações de Serviço Público (OSP) e sustentado por uma rede de aeroportos e aeródromos com características muito díspares, chegou a um ponto de inflexão. A progressiva indisponibilidade do Bombardier Dash 8 Q200 – a única aeronave comercial actualmente em operação capaz de cumprir os requisitos das OSP em pistas curtas como a do Corvo – expõe uma fragilidade estrutural, com implicações que vão muito além da operação de um modelo de avião.
Parte 1 – O impasse tecnológico e a inevitabilidade da resposta
O Bombardier Dash 8 Q200 permanece, actualmente, como a única aeronave comercial certificada com 35 ou mais lugares, capaz de operar com regularidade e segurança, em pistas tão curtas como a do Corvo. A sua presença na frota da SATA tem permitido, até hoje, assegurar as ligações inter-ilhas nos aeroportos com maiores restrições operacionais. No entanto, a sua retirada da operação acabará por se fazer, ditada por uma tendência global, em resultado da idade da frota, da escassez de peças e da crescente dificuldade em garantir manutenções economicamente viáveis.
Enquanto isto, a indústria aeronáutica internacional deixou, há muito, de investir no desenvolvimento de aeronaves regionais com características STOL 1 e capacidade mínima de 30 a 40 passageiros. O mundo evoluiu. A generalização de aeroportos de maior dimensão, mesmo em regiões remotas, tornou desnecessário, aos olhos do mercado, continuar a produzir aviões especificamente adaptados a pistas curtas. O projecto ATR 42-600S – a única excepção potencial – foi cancelado em 2024 pela própria ATR, precisamente por falta de encomendas suficientes que justificassem o investimento industrial e os “aviões do futuro”, estão cada vez mais atrasados.
Esta realidade coloca os Açores perante um dilema incontornável. Sem estímulo tecnológico vindo da indústria, e com a progressiva indisponibilidade de aeronaves adaptadas ao seu território, não restará mais tarde ou mais cedo, ao Governo Regional dos Açores outra solução, que não passe por investir na melhoria da sua rede aeroportuária. Caso contrário, corre-se o risco real de, por exemplo no caso do Corvo, se perder o acesso regular por via aérea – com tudo o que isso representaria em termos de mobilidade, isolamento e coesão territorial.
Frente a este cenário, não estamos perante uma questão de opção, mas de calendário. A decisão política pode ser adiada. A realidade operacional, essa, acabará por impor-se.
Uma geografia singular e uma operação exigente
O arquipélago dos Açores estende-se por mais de 600 quilómetros no meio do Atlântico Norte, numa configuração dispersa e exposta, dividida em três grupos geográficos com características meteorológicas frequentemente adversas. As ilhas estão separadas por distâncias significativas, exigindo ligações seguras, regulares e flexíveis.
Em muitas regiões insulares do mundo é possível recorrer, com regularidade, a hidroaviões ou a aeronaves monomotoras ligeiras como solução complementar para as ligações entre ilhas. Nos Açores, a ondulação constante, a extensão das travessias, a variabilidade das condições atmosféricas e a exposição oceânica, tornam estas soluções operacionais imprevisíveis e, durante grande parte do ano, tecnicamente desaconselháveis.
Não existe, por isso, um plano B funcional para assegurar, por via aérea, a conectividade inter ilhas em situações de falha de infraestrutura aeroportuária. E a frota marítima regional é actualmente residual, com limitada capacidade de redundância operacional ou de resposta rápida, o que agrava as vulnerabilidades do sistema.
Acresce que, em caso de catástrofes naturais – sismos, erupções vulcânicas ou tempestades severas – a ausência de pistas adequadas e de ligações aéreas eficientes poderá comprometer não apenas a evacuação e socorro imediato, mas também a resiliência territorial do conjunto do arquipélago.
1 STOL – Short Take-Off and Landings (Aterragens e Descolagens Curtas)
Victor Silva Fernandes *
- Comandante jubilado da aviação comercial e Lead Arranger de um consórcio independente interessado na reestruturação da SATA