“Ia-se vivendo a aura do fantástico com a aproximação inesperada do novo século, cujo objetivo era encandear as pessoas enquanto lhes fazia nascer impulsos de natureza desconhecida, por isso se sentindo elas às vezes joguetes de forças invisíveis. Claro que isto era sentido mais por umas pessoas do que por outras, e entre as primeiras se encontrando avó Eulália.”
Falar de avó Eulália, é falar do S. Jorge daquele tempo, de quando ele era apenas uma concha isolada do resto do mundo, a respirar a dúbia existência de um universo inocentemente adormecido na verdura das suas pastagens e no basalto enrugado das suas rochas.
O movimento das marés era então um convite à preguiça por onde os dias se entrelaçavam elásticos, saturados de modorra e de sal, até parecer que se ouvia o tempo, em pingos redondos e mansos, diluir-se nas lagoas das fajãs. Os sustos, os dramáticos sustos, haveriam de se manifestar com a aproximação do novo milénio.
No rasto dos sustos de então ficava o alvoroço dos improvisos com que avó Eulália estilhaçava em certas noites o sono de toda a família quando, profundamente adormecida, lhe saíam em catadupa versos rimados na voz soante e segura de quem conhecia na perfeição todos os fios com que se urdia a delicada teia doméstica. E ai de quem, no auge da consternação, resolvesse pôr um freio àquele desassombro rimado e eloquente. Era certo e sabido vê-la sair instantaneamente desse estado de graça para uma indignação a subir de tom que a todos desarmava, por esbarrar com o emparvecimento da família àquelas horas da noite, ou não sabiam eles que tinham vacas para ordenhar logo pela manhã, o mais certo era o juízo estar a escassear lá em casa. Ficava então a rezar os seus intermináveis rosários que haveriam de afastar para muito longe o tresloucamento dos seus e fazê-los ter comportamentos normais.
E a azáfama começava bem cedo lá em casa, uma casa que o cantar do galo se encarregava de despertar e encher de ruídos. Primeiro era o lume que era preciso acender, o borralho remexido, os gravetos bem escolhidos, prontos a fazer saltar a labareda de todos os dias, o rito primordial com que se iniciava a vida, ainda as manhãs eram cinzentas e o futuro uma coisa por definir. Pouco depois já se ouvia a estridência das colheres contra os bordos das tigelas cheias de sopas de leite, e comia-se então regaladamente, pausadamente, na satisfação e no conforto que emanava do leite fumegante e das sopas odorosas.
Outros barulhos vinham limar os silêncios destas madrugadas modorrentas : as latas de leite, escrupulosamente lavadas de véspera, passavam a ter vida nas mãos dos seus donos, depressa restituídas à verticalidade de latas tapadas e dignas, num alarido de entrechoques e de destino que se antecipa. Era a partida para os pastos e para a ordenha das vacas. Quando fazia bom tempo havia outros lugares por onde espraiar forças e atividades. Infelizmente às vezes o bom tempo era tardio, com o nevoeiro a interpor-se, não se interpondo contudo na boa disposição das pessoas que não deixavam de fazer as coisas que tinham de ser feitas, animando-se umas às outras, Para o ano há-de ser melhor se Deus quiser, O principal é ter saúde, E a graça de Deus, ficando apenas em suspenso o ámen..
Nestas e noutras coisas se apoia a memória daqueles tempos.
Ia-se vivendo a aura do fantástico com a aproximação inesperada do novo século, cujo objetivo era encandear as pessoas enquanto lhes fazia nascer impulsos de natureza desconhecida, por isso se sentindo elas às vezes joguetes de forças invisíveis. Claro que isto era sentido mais por umas pessoas do que por outras, e entre as primeiras se encontrando avó Eulália. Acordava ela ciente das estalactites do presságio, lá estavam elas em suspenso no teto da Ilha e à espera da hora propícia da concretização. Era por isso que punha a filha a escrever longas cartas ao filho que vivia na Terceira a instar com ele para que regressasse, pois que aquela terra armadilhava grandes desgraças. Que viesse, que viesse. Mas todos viam naquelas manifestações o extravasar de uma loucura senil que não devia ser levada muito a sério. E quando a filha tentava desarticular todo o mistério que se escondia por detrás destes temores sombrios, ela nem sempre a ouvia, não porque não lhe falasse em voz bem audível, dando-se antes o caso de se sentir aturdida pela muita luz que ameaçava cegá-la também em seu interior.
Os últimos dias de avó Eulália foram cheios de grandes predições acerca do futuro. Apesar de quase cega, continuava a fiar lã na roca e no fuso com eles se identificando na idade e na sabedoria, pois que os fios de lã lhe saíam finos e bem torneados e algumas predições se iam confirmando aos olhos de todos.
Era durante o dia que avó Eulália se desdobrava em premonição iluminada de factos vindouros, enquanto ia dobrando a lã que de cardada passava a fio. Dir-se-ia que era esta lã a alimentar-lhe a iluminação daquilo que mais ninguém via, por isso todos se esforçavam para que ela nunca lhe faltasse, apesar de naquela altura já escassear a mão de obra para a tosquia das ovelhas e das demais operações até ser lã apresentável, capaz de passar pelos dedos experimentados de avó Eulália que por mais de uma vez a tinha recusado: Mas isto não é lã que preste, que é que vocês me deram para as mãos ?,eu não fio isto. Ou: Esta lã não foi cardada, vocês andam todos a fazer pouco de mim. Tinha então que se arranjar lã devidamente tratada com o propósito exclusivo de entretenimento de avó Eulália, pois ela facilmente podia passar sem comida ou quase a pretexto da falta de dentes, o mesmo não se dizendo da falta de lã.
E a memória daquele tempo de intemporalidade feito, não se cansava de deixar marcas ao longo do novo século que se aproximava. Foi quando apareceu um boato alarmante divulgado pela agência Lusa e confirmado pela Organização Meteorológica Mundial : previa -se que as regiões próximas das placas tectónicas como os Açores, o Japão, a Indonésia e a costa oeste dos Estados Unidos iriam ser afetadas por grandes cataclismos geológicos durante o mês de maio que se aproximava. As consequências podiam ser muito graves no eco sistema terrestre e criar condições favoráveis à ocorrência de terramotos e de erupções vulcânicas. Uma tal dose de precisão e de clarividência causava arrepios e escusado será dizer que ia instilando o medo e a insegurança na alma das pessoas. Tanta gente que perdia o sono e o sossego, tanta gente que chegou a precipitar-se para fora da Ilha, à medida que se aproximava a data fatídica, o 5 de maio.
Deste comportamento poderá dizer-se tanta pressa, tanto medo, tanto ensandecimento sem controlo. Ah, que falta fazia avó Eulália sentada à roca, urdindo a vida com fios cardados pelos dedos experimentados da cegueira. Que falta o desassombro das suas predições. Que falta. Ela curvada sob o peso da iluminação e da inevitabilidade. Que falta, que falta, que falta vai repetindo um chafariz em pingos de água mirrada .
Maria Luísa Soares*
*Escritora