Uma Nobre Arte, tantas vezes maltratada
“Só no Sul, a região do país com mais falta de médicos e onde se inclui a Região Autónoma dos Açores, os dados revelam que em 2022 entraram na OM 426 pedidos de declarações e que em 2023, até ao início de dezembro, tinham sido recebidos 341 pedidos.”
Os dados para análise: este país não é para médicos que honram o Juramento de Hipócrates
Esta semana analisemos alguns dados, saídos em 2 jornais nacionais. No Público, do dia 18.12.2023, soubemos que 24,7% “dos” 1737 jovens médicos tem sinais graves de exaustão, num inquérito em que a Ordem dos Médicos quis apurar níveis de burnout. O burnout resulta da conjugação de sintomas relacionados com exaustão emocional, desumanização, despersonalização e perda de realização profissional, refere o mesmo artigo. 55,3% dos médicos internos em formação especializada estão em risco de desenvolver esta síndrome (estes dados foram recolhidos entre 7 de Agosto e 22 de Setembro de 2023, através de questionário online, e teve uma taxa de resposta de 16,9%).
O inquérito revelou ainda que “64,7% dos inquiridos têm exaustão emocional grave, 45,8% despersonalização grave e 48,1% uma diminuição grave de realização profissional”. 35,3% dos respondentes disseram ter iniciado algum tipo de apoio psicológico ou psiquiátrico durante a formação especializada.
A média de idades dos internos que responderam ao inquérito foi de 29,9 anos. “Em teoria terão mais 30 anos de carreira pela frente. Em que condições e qual a responsabilidade do sistema relativamente a estas pessoas ao permitir este nível de burnout?”, disse ao Público o Dr. José Durão, da Ordem dos Médicos (OM).
Sobre as condições de trabalho, “84,8% disseram que realizavam horas extraordinárias, sendo a média de horas de trabalho semanal de 52,8 horas”. Mais de metade (55,1%) realiza pelo menos uma vez por mês turnos superiores a 12 horas, 62,1% realizam trabalho nocturno e 93,5% trabalham fora do horário laboral. 54,4% consideram ter uma relação entre vida pessoal e profissional desequilibrada ou muito desequilibrada. 43,4% dos internos “referiram encontrar-se satisfeitos ou muito satisfeitos com a formação especializada”.
Por seu lado, no DN do mesmo dia 18.12.2023, ficamos a saber que 453 médicos do Centro e Sul pediram à Ordem declarações para sair do país, em 2023. Mais do que no ano de 2022. E que nos últimos 5 anos quase dois mil médicos do Centro e Sul pediram à Ordem dos Médicos (OM) declarações de “good standing”, uma espécie de certificação e de qualificação profissional que lhes permite exercer fora de Portugal, frequentar internatos da especialidade, estágios ou pós-graduações. Só no Sul, a região do país com mais falta de médicos e onde se inclui a Região Autónoma dos Açores, os dados revelam que em 2022 entraram na OM 426 pedidos de declarações e que em 2023, até ao início de dezembro, tinham sido recebidos 341 pedidos. Em 2021 entraram 263 pedidos, em 2020 entraram 302, e em 2019 entraram 338.
Para o internato da especialidade, a iniciar a 1 de janeiro de 2024, ficaram por preencher 406 vagas, o que quer dizer que mais estes jovens médicos, que acabaram o curso na faculdade, não optaram pela formação específica. Agora, ou trabalham como médicos indiferenciados e prestadores de serviços ou vão fazer a sua formação no estrangeiro.
“As coisas têm vindo sempre a piorar, e cada vez mais. O que faz com que os médicos procurem outras alternativas, ou no estrangeiro ou no sector privado. Mas as saídas não acontecem só por uma questão remuneratória”, diz o Bastonário da OM no DN. “Os médicos estão a sair do SNS porque estão insatisfeitos, porque não se sentem bem e porque vêem o SNS a desmoronar-se de dia para dia”, argumenta ainda. O bastonário diz mesmo: “Sou médico há mais de 25 anos e nunca vi tanta insatisfação e desmotivação no serviço público, porque as pessoas não veem uma luz ao fundo do túnel e acham difícil que seja encontrada uma solução.”
A maioria dos médicos a pedir declarações de good standing está na faixa etária dos 30 aos 40 anos. O Reino Unido é dos países que continua a ser mais procurado, mas há outros, como a Alemanha, a Suíça, a Irlanda, os Estados Unidos da América, o Canadá, a Austrália, a Arábia Saudita. As novas gerações basicamente querem “mais qualidade de vida, e tempo para a vida pessoal”.
De 2012 para 2022, a OM passou de 44.497 médicos inscritos para 61.235, mais 16.738; no SNS apenas há registo de mais 6895 novos médicos, o que quer dizer que quase 10 mil ficaram de fora ou saíram. Os números do Ministério da Saúde referem que o SNS integra cerca de 31 mil médicos.
Os dois sindicatos médicos andaram 19 meses a negociar com a tutela. O Sindicato Independente dos Médicos aceitou um ditado, plasmado num aumento até metade do que estava a ser pedido. A Federação Nacional dos Médicos constata que o que foi assinado “é um mau acordo”, e espera que quem vier a seguir retome as negociações.
A Ciência da Semana: a Variante JN.1
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a variante JN.1 como “variante de interesse”, devido à sua “rápida disseminação”. Segundo a OMS, a variante JN.1 do SARS-CoV-2 “poderá aumentar o peso das infecções respiratórias em muitos países” do hemisfério norte, com o aproximar da estação do inverno.
A OMS assegura, no entanto, que as vacinas em circulação para a covid-19 (que previnem a doença grave e morte) actuam contra esta variante, que deriva da linhagem BA.2.86 (originada na variante Ómicron).
A homenagem da semana: aos responsáveis clínicos da Unidade de Saúde de São Miguel
Esta semana soubemos pela secretária regional da Saúde, Mónica Seidi, que o Centro de Saúde de Ponta Delgada se encontra a realizar 160 consultas extra por dia, das quais 60 estão a acontecer no âmbito do SAC (Serviço de Atendimento Complementar) e as restantes estão a ser realizadas pelos 50 médicos de família da instituição (duas consultas por dia por cada médico). Segundo a secretária regional, o objetivo é “retirar pressão” do serviço de urgência do Hospital do Divino Espírito Santo (HDES), a fim de “deixar o serviço de urgência só mesmo para aquelas situações imprescindíveis e que têm de ser avaliadas por um médico de cuidados diferenciados”. Está ainda previsto um “reforço” da Linha de Saúde Açores, com o intuito de “tentar que os utentes, antes de se dirigirem ao serviço de urgência, façam um primeiro contacto para que possam ser aconselhados por profissionais de saúde”.
Um Santo e Feliz Natal para todos. Muita saúde!
Mário Freitas*
*Médico consultor (graduado) em Saúde Pública, competência médica de Gestão de Unidades de Saúde