Já aqui me referi, criticamente, ao costume parlamentar estabelecido entre nós de inundar a ordem do dia dos diversos parlamentos existentes em Portugal com a votação de recomendações ao Governo. Não se trata de um instrumento previsto nos regimentos respectivos, mas o certo é que se tem vindo a generalizar tal praxe e acaba por ser admitida como um meio de intervenção política dos partidos com assento parlamentar.
Em minha opinião esta praxe contraria o princípio da separação dos poderes e tem como consequência prática que o Poder Executivo acabe ignorando as ditas recomendações; por sua vez, o Parlamento corre o risco de cair no ridículo, ao aprovar diversas recomendações sobre a mesma matéria, que aparecem sucessivamente publicadas no Diário da República, por terem pequenas diferenças entre elas, em resultado da sua diferente origem político-partidária.
A sociedade plural dos nossos dias tem levado ao aparecimento de outros órgãos representativos, que também se sentem no direito de formular as suas recomendações ao Governo. Antes eram mais frequentes os cadernos reivindicativos, sobretudo dos organismos representantes dos trabalhadores ou das entidades empresariais, incluindo as do sector agrícola. Mas estes estão hoje com expressão formal nos Conselhos Económicos e Sociais, que abrangem até entidades de outras áreas, tendo por isso ganho de causa na própria estrutura dos órgãos estaduais, com características de direito público. Das suas variadas iniciativas emanam também recomendações ao Governo, com as quais os responsáveis são confrontados, sem apelo nem agravo.
O caso mais recente e até algum tanto surpreendente é o aparecimento de uma tomada de posição formal do Tribunal de Contas contendo as recomendações pelo mesmo formuladas nos seus pareceres anuais sobre as contas do Estado e das Regiões Autónomas, reunidas em volume próprio e divulgadas em bloco no começo da legislatura. Cheguei a pensar que se tratava de uma iniciativa da Secção Regional do dito Tribunal, mas vim depois a verificar que já tinha sido adoptado procedimento idêntico a nível nacional e na Região Autónoma da Madeira.
As recomendações do Tribunal de Contas são muito de considerar e o Governo faz bem em ir assumindo como próprios os comportamentos delas constantes que tiver como adequados. Digo isto porque o Governo tem legitimidade, conferida pelos cidadãos em eleições livres e justas, para também interpretar as leis e pode vir a verificar-se que o seu legítimo entendimento é diferente do que preconiza o Tribunal de Contas. Tal ocorre sem desprestígio do Tribunal, que sabe bem da existência dessa prerrogativa governamental e por isso não se estende em recomendações para além de certos e naturais limites.
Mas já a apresentação de um documento contendo recomendações no início da legislatura me suscita algumas dúvidas de razoabilidade. Para alguns pode até confundir-se a chamada de atenção do Tribunal, movido certamente pelo intuito saudável de defesa do interesse público, com uma tomada de posição de apoio ao discurso eleitoral de alguma das forças político-partidárias concorrentes às eleições. Ora, isso não pode acontecer, para salvaguarda do prestígio do próprio Tribunal, como órgão judicial independente e acima das naturais querelas dos partidos políticos.
As leis em vigor alargaram a competência do Tribunal de Contas de uma jurisdição de mera legalidade para uma apreciação da economia das decisões de despesa pública. Julgo que é daí que procedem a maioria das recomendações dirigidas ao Governo e aos titulares das outras entidades sujeitas à correição do Tribunal, já que em matéria de legalidade há consequências imediatas sobre os eventuais infractores.
Entendo que convém ao Poder Judicial uma atitude de grande recato, que o mantenha longe dos focos mediáticos. Nem por um momento sequer ponho em dúvida a sua legitimidade democrática, que deriva da Constituição e das leis emanadas da Assembleia da República, único órgão com poder legislativo na matéria. E por isso estou atento e me dói qualquer comportamento que possa sequer confundir-se com uma cedência aos apelos a um protagonismo, melhor adaptado a quem tem de concorrer a eleições e assim se submete ao juízo popular.
João Bosco Mota Amaral*
*(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo
Ortográfico)