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Ferreira de Castro, as eleições e a colaboração no Diário dos Açores

As eleições legislativas antecipadas que decorrem hoje e vão decidir o próximo futuro político de Portugal interrompem – de momento – os cenários difundidos por empresas de sondagens que introduziram, desde Janeiro, motivos de perturbação, de ansiedade e de sobressalto, agravados pelos vaticínios inquietantes dos profetas do apocalipse.
A utilização da referência eleições livres constituía uma das reivindicações inevitáveis em todos os documentos políticos da oposição antes do 25 de Abril. Jaime Cortesão num fim de tarde, na sua casa ao lado da Basílica da Estrela, perante Rodrigues Lapa, Castelo Branco Chaves e Vitorino Nemésio fez o seguinte comentário: «Temos de rejeitar e de impedir a generalização deste disparate. As eleições são por natureza livres. Podem ser ou não ser honestas. Aqui é que reside o cerne da questão». Tive o privilégio de estar presente e de ouvir estas e outras advertências, graças a Vitorino Nemésio, que me proporcionou a excelência do convívio em casa de Jaime Cortesão.
Jovem repórter do jornal «República», já havia entrevistado Jaime Cortesão, presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores, a propósito da campanha para atribuir o Prémio Nobel a Aquilino Ribeiro ou Miguel Torga. Foi, no início da carreira, o primeiro confronto que enfrentei. Decidi ouvir Jaime Brasil no inquérito e, entretanto, instalou-se a guerrilha ao avançar com o nome de Ferreira de Castro, o escritor de maior renome no espaço da língua portuguesa, traduzido em numerosas línguas do mundo.
Ferreira de Castro consagrara-se na criação literária e também exercia uma intensa atividade cívica. Concedeu ao Diário de Lisboa, a 17 de Novembro de 1945, uma entrevista escaldante publicada ao abrigo dos vinte dias da chamada «liberdade suficiente». Denunciou as feridas e as pústulas que alastravam nas áreas políticas, culturais e sociais. Mas, de imediato, observou: «A falta de liberdade de pensamento é a causa fundamental, a única mesmo, de tudo quanto se tem passado. O resto são simples consequências».“.
Citou exemplos: «Desde 1935 em diante, uma obra como «Os Lusíadas» talvez não pudesse ser publicada». «A primeira ou uma das primeiras circulares da censura, enviada aos jornais em 1926, e que eu li, proibia, entre outras coisas, a transcrição de páginas de Alexandre Herculano, de Ramalho Ortigão, de Eça de Queiroz e, se bem me lembro, de Oliveira Martins. Herculano está no panteão e se os outros três escritores não estão lá, não é porque não o mereçam também.»
Aludiu, entretanto, a três casos atuais e concretos: «Aquilino Ribeiro, a pedido do seu editor, que temia represálias, mandou um livro seu à censura. E a censura proibiu o livro de Aquilino. Alves Redol, tem outro livro também proibido. José Régio viu um romance seu retirado da circulação».
«Escrever assim – continuou – é uma verdadeira tortura. Porque o mal não está apenas no que a censura proíbe mas também no receio do que ela pode proibir. Cada um de nós coloca, ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa de trabalho – e essa invisível, incorpórea presença tira-nos toda a espontaneidade, obriga-nos a mascarar o nosso pensamento, quando não a abandoná-lo, sempre com aquela obsessão: «Eles deixarão passar isto?».
O regime ditatorial de Salazar – salientava noutro passo – «construiu estradas, portos, edifícios escolares, mesmo hospitais, tão bons como os de Nova York. Mas, ao mesmo tempo, tirou (aos portugueses) toda a liberdade de exprimir a sua opinião. Persegue-os, deporta-os e deixa-os serem injuriados. Criou (estávamos em 1945) durante 20 anos, um regime de medo».
Concluía: «Não sou político. Sou apenas um intelectual que deseja, que luta por uma Humanidade menos infeliz do que ela é. Mas confesso que não compreendo esse patriotismo que não cessa de clamar, perante os povos livres do Mundo, que nós, portugueses, somos tão inferiores a eles que só podemos viver como um rebanho de escravos».
Nascido no lugar de Salgueiros, da freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis, Ferreira de Castro frequentou apenas a escola primária, únicas habilitações oficiais que possuía e de que se orgulhava. Ia completar doze anos quando se dirigiu para o Brasil, como tantos jovens da sua região. Passou a adolescência no interior da Amazónia. Trabalhou no seringal Paraíso, na margem do rio Madeira. Esteve ainda em Belém do Pará.Foi empregado de armazém, colador de cartazes, moço de bordo num barco de cabotagem. Comeu o pão que o diabo amassou.
Ao contrário das personagens dos romances de Camilo, regressou pobre e sem comendas. Trouxe, contudo, a riqueza da experiência humana. No romance Emigrantes (1928) relatou o drama dos camponeses de Portugal, que iam para o Brasil, sem nenhuma preparação e especialização, e ali ficavam, desejosos de regressar à terra, mas envergonhados de o fazer mais pobres do que partiram.
Publicou, depis, A Selva (1930). Descreveu o trabalho duro vivido na adolescência, rodeado pela deslumbrante paisagem natural da Amazónia.
O diretor do Centro de Estudos Ferreira de Castro, em Sintra, Ricardo António Alves acaba de publicar uma obra do maior interesse: Intitula-se Ferreira de Castro Uma Biografia 1898-1919. Recapitula, aprofunda e retifica tudo quanto já fora escrito por Jaime Brasil, Álvaro Salema, Judith Navarro e outros biógrafos e críticos
Além do texto da introdução e de uma cronologia, Ricardo António Alves apresenta-nos os seguintes capítulos: Um ursinho em Ossela 1898-1911; no coração da Selva 1911- 1914; na Feliz Lusitania, do Pará ao Rio – 1914- 1919. É neste ano que volta a Portugal e se radica em Lisboa e ingressa no jornalismo profissional. Simultaneamente, mantém uma colaboração regular noutros órgãos de comunicação, entre os quais o Diário dos Açores.
A relação de Ferreira de Castro com o Diário dos Açores contribuiu para visitar todas as ilhas do Açores, a fim de escrever um capítulo de uma das suas obras de projeção nacional e internacional e que será integrada em Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-1938) logo seguida de A Volta ao Mundo (1941-1944). Ambas tiveram o mérito, num país fechado, orgulhosamente só, de promover através da leitura o conhecimento de lugares e de povos de tradições culturais diversificadas, a aceitação de convicções políticas e religiosas antagónicas.
Nestes momentos cruciais temos de reconhecer a coragem moral e intelectual de Ferreira de Castro ao romper o silêncio para desmascarar a ditadura. Há 50 anos Portugal ficou diferente.
Qualquer que seja a avaliação, o 25 de Abril cerrou as grades das prisões políticas de Caxias, do Aljube, de Peniche e encerrou o Tarrafal.
Permitiu a formação de partidos. Estabeleceu o pluralismo de opinião. Tem havido acidentes de percurso, alguns deles lamentáveis.
Todavia, a Constituição da República fixou as regras do exercício do Estado de Direito e a enumeração dos objectivos fundamentais para o combate inadiável à rotina e ao pensamento único; para reclamar os imperativos da mudança, incutir a exigência de responsabilidade ética, estimular a ousadia e a inovação para a transformação do País, mergulhado em estruturas arcaicas.
Houve, de imediato, a restituição das liberdades. Realizou-se a integração na Europa.
Como é mais do que evidente, falta muito para atingir o desejável. Faltará sempre, aqui e em outros países livres e democráticos, que dentro dos condicionalismos inevitáveis enfrentam os mais graves, contínuos e inesperados problemas mas procuram articulá-los com os grandes desafios para o futuro.

António Valdemar*

*Jornalista, Carteira profissional numero UM. Sócio efetivo da Academia das Ciencias

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