Karl Popper afirmava que os avanços democráticos e com eles os avanços nos direitos básicos da igualdade estrutural se deviam, não aos políticos, mas aos indivíduos. Essa premissa é correta porque é feita na perspetiva da história da humanidade (e não na premissa da sociedade como se baseava Karl Max). Karl Popper tinha razão nessa perspetiva porque ela é abrangente na amplitude da história do indivíduo. Mas nas realidades mais profundas dessa história, embora a sua premissa seja certa à superfície, ela não engloba realidades distintas adentro das democracias.
Quando Winston Churchill afirmou que “a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros” estava a dizer que em política nada é perfeito, mas que ao menos a democracia é aproveitável. Apesar do mérito da individualidade, o pensamento não é inteiramente correto; pelo contrário, devemos dizer que a democracia é o melhor dos regimes. Devemos, aliás, afirmar que é o único verdadeiramente apropriado para a humanidade. A democracia é o único regime político, porque: a) garante o reconhecimento da dignidade humana independentemente das crenças (ou seja, o universo da política toma conta do indivíduo exclusivamente como cidadão); b) requer o diálogo com todos sem exceção (isto é, a concórdia é racional e não apenas emocional; não se confunda racionalidade incoerente com racionalidade como centro nevrálgico da consciência humana; no ato sexual da criação de um novo cidadão somos tudo emocional, mas depois disso se perdermos a razão perdemos tudo); c) a deliberação é tomada a favor de todos sem exceção (isto é, que a maioria ganha quando é necessário tomar uma deliberação final, mas a maioria continua a ouvir os problemas das minorias e a discutir os seus problemas e a tentar resolve-los); d) porque, em teoria, os outros modelos não têm essa teleologia universal e, na realidade prática, na história da humanidade os outros modelos nunca preencheram o mínimo dos quatro itens supra. Estes quatro elementos são para levar a sério; se não forem levados a sério – as populações tornam-se escravas dos que têm a tendência para se governar a si próprios e aos seus familiares e próximos, e através, não só da maldade pura, mas também por via dos alicerces biológicos do homem (e, portanto, da política) a “seleção de parentesco” e o “altruísmo recíproco”.
A integralidade destas regras supremas da democracia – são extraordinariamente difíceis de concretizar: porque a humanidade tem sentimento e consciência, mas tem o extraordinário defeito de misturar a pessoa singular com o indivíduo coletivo, preferindo em excesso o 1.º e preterindo por regra o 2.º. Por que temos necessidade de reconhecimento, interno (perante nós próprios) e externo (perante ou outros), somos levados a impingir os nossos gostos e crenças pessoais aos outros, até à força. O reconhecimento deste problema já seria uma obra de arte na história da humanidade; mas estamos longe disso. Neste ponto – acabamos de nascer. Não existe nenhuma democracia perfeita; mas é a única coerente com a condição humana. Ou somos efetivamente donos do nosso destino, ou somos apenas um número para aqueles que governam.
Sempre que a sociedade tem um predomínio de transcendência face à racionalidade (no seu sentido correto, racionalidade douta e não racionalidade apenas emocional) – eis que ficamos todos em perigo. Juntando as crenças religiosas e sociais num número exagerado dos indivíduos duma sociedade e eis que o mundo muda e muito e para pior. Os Açores encontram-se neste tipo de encruzilhada: os políticos são tão medíocres que quase que estamos a pastar, imaginando ingenuamente que estamos a evoluir. Um número estatístico é apenas um modelo virtual para pontuarmos uma realidade possível no sentido de a melhorarmos; mas, na realidade, nos Açores, ela apenas serve como comprovativo de que se fez ou vai fazer – sem qualquer sentido de responsabilidade para a qualidade humana e de vida evolutiva efetiva.
A autonomia política é uma novidade em qualquer sociedade; e é ainda mais quando essa sociedade tenha quinhentos anos de isolamento espiritual e político, como é o caso açoriano. Numa sociedade moderna – isto é, numa sociedade que evoluiu paulatinamente aos poucos, década a década, século a século – o indivíduo é herdeiro desse património genético. Numa sociedade tendencialmente moderna – como a dos Açores que adquiriu a autonomia política constitucional apenas ao fim de quinhentos anos de isolamentos e contradições, os problemas são diferentes e para pior. Falta-lhes imaginação; falta-lhes, no seu espírito, matéria para sonhar; falta-lhes pontos de contato que lhes provoque a imaginação cidadã e política. Numa sociedade moderna, governos de coligação dão frutos maduros e de qualidade, porque se discutem os problemas e dão-se as soluções com cedências e contrapontos. Numa sociedade tendencialmente moderna – os governos de coligação governam para a estatística, isto é, governam através da atribuição de benefícios, preterindo as políticas estruturais para o presente e o futuro.
Foi o que acabou de acontecer, em parte, com o XIII governo regional do PSD, CDS e PPM e com acordos de incidência parlamentar. Temos de perguntar: e é o que vai acontecer com este XIV governo regional? Parece que sim num exemplo ilustrativo: como se explica que a Vice-Presidência esteja três anos na segurança social a distribuir dinheiro e agora vai para as relações internacionais? A breve trecho vamos assistir, ao vivo, à finalidade deste salto quântico: que vai tratar de tudo o que é bonito à vista desarmada, exceto da autonomia e do melhoramento da vida das pessoas insulares que vivem a vida insular assim nua e crua e selvagem.
Nos Açores falta tudo: confiança; reformas e oportunidades, esperança e liberdade; uma autonomia de seriedade para as pessoas; uma autonomia de realização para as famílias e empresas. Falta-nos uma autonomia que mantenha os insulares interessados em mantê-la. Estamos no centro dos cinquenta anos de democracia: nas primeiras décadas a palavra e o sentimento eram de esperança; agora o timbre é a desconfiança; por isso se aposta na concórdia, mas de tão falsa aumenta a desconfiança. Até o jornalismo permite-se propor um acordo de regime entre o PSD e PS a propósito do apoio financeiro à comunicação social; nunca o propôs para melhorar a qualidade da democracia. Estamos no meio duma tempestade; aguente-se quem puder; salve-se quem puder. É nesse registo que vivemos. Até quando vamos permitir que a autonomia sirva a política em vez das pessoas?
Arnaldo Ourique