“O tempo tem sempre a última palavra. Com esta obra nada se encerra. Antes se começa. Os vultos ilustres da Vila- Cidade, a primeira capital da ilha terão de esmaltar o percurso de mais um vulto singular que não se apaga, mas se agiganta no Tempo.”
É sempre Boa Hora para um testemunho generoso.
Para além de ser uma autobiografia, “Sacrifício que Edifica”, de José Estevam Pacheco de Melo ( 1943- ) é um livro de memórias. No seu “Legado de uma Vida em Vila Franca do Campo” pela voz plural da saudade desfilam os nomes de gentes laboriosas e teimosas no dever de melhor amar a sua Terra, a velha capital da Ilha de São Miguel, “a vila que “desbanca” e abrir horizontes cada vez mais longe.
Menino nascido da pitoresca freguesia da Ribeira das Taínhas, a sua infância reveste-se de mil dificuldades inerentes às gentes habitantes destas ilhas esquecidas e carregadas de tormentas e lutas. Ser açoriano é mergulhar no mar com os olhos postos na distância e sonhar regressos cada vez mais altos e mais livres. É uma luta constante contra as adversidades da vida nestes rochedos que ocultam perigos, medos e traições que só a vontade indómita consegue manter de pé.
Assim o Professor José Estevam, ou o senhor Presidente, como é carinhosamente tratado por tantos, no seu “Sacrifício” transmuta-o em Dádiva, ou Oblação de peito aberto às lutas com o dever por guia e afeto à terra natal, ao seu engrandecimento e muito para além do que se pode avistar destes montes. A tenacidade desperta bem cedo, no denodado empenho aos estudos. Paradigma meritório para os jovens de hoje. Traça bem cedo uma meta arrojada. Seria engenheiro civil. Um sonho e projecto existencial que perdeu. Olhando à sua roda via as dificuldades tremendas com que lutava seu pai no Jornal “A Vila ”e em “A Crença” tipógrafo que o moldou no papel que ele lia na forja. Dai a inclinação para ser professor já que ainda adolescente via, como tantos, que ir além da quarta classe era já uma vitória. As primeiras grandes alegrias ensinaram-no a lutar. Tinha brios, as armas eram os livros e os Professores o dever a desafiar. O prof, Orlando Brandão, exímio em matemática, (era poeta nas horas vagas) com a sua disciplina férrea, mas carregada de argúcia, orgulhava-se dos seus alunos… E deixou-lhes boas lembranças. Eles foram tantos e José Estevam um dos melhores do tempo. Como acontecia tanta vez não foi contemplado com a ambicionada bolsa de estudo para engenharia civil. Destino talvez? Frustração que fez o adolescente tomar consciência da pobreza das gentes humildes, casa negras e térreas, gente que com bem pouco se tinha de contentar.
Do peito juvenil surgiu a pena da revolta e publicou no Semanário “A Vila” do Dr. Augusto Botelho Simas, um artigo em que clamava contra a falta de habitação e as condições em que vivia tanta gente. Por isso, logo a PIDE o rondou e ficou com o “traço vermelho” na ida pra a tropa. Bem mais tarde, nas grandes convulsões dos primórdios do 25 de abril com novos ventos, chamaram-no “fascista”! Tempos de terramotos e tempestades. Jovem professor, levado pelos ventos de África, nos tempos de uma defesa inglória de tantos portugueses. “Heróis de causas perdidas” foi lutando como “Ranger” em missões impossíveis no Ultramar, terras de Moçambique onde demonstrou a sua coragem em momentos que as asa da morte passou como um sopro. Desditosa sorte teve o seu irmão mais novo, Emanuel Pacheco de Melo, herói desta Terra que morreu ao serviço da Pátria em Moçambique e causou a maior consternação nesta Vila. A merecida Cruz de Guerra não apaga nunca a dor. Mas somos do mar, lutadores sem tréguas, as ondas são fagueiras, ou traiçoeiras, nunca dão descanso. Assim mostrou ser a Vida de José Estevam.
Estas páginas trazem uma panóplia de nomes de gente trabalhadora, persistente e sumamente dedicada a sua Vila. De boa memória, sem esquecer tantos bons companheiros, trabalhadores, empregados de ofícios vários, que esta Nobre Vila teve sempre. Num projecto de sacrifício comum por dar uma vida sempre mais rica de Espírito e de generosidade como os vilafranquenses sabem ser abertos ao Mundo em qualquer parte.
O juvenil professor José Estevam, ou o provedor dinâmico da Santa Casa da Misericórdia, que reergueu dos escombros em que caía, ou ainda o Presidente da Câmara que em 1991 foi eleito “o Autarca do Ano” não podia passar incólume de “tantas traições em terra e no ar”. Por entre episódios revela um vivo interesse por tudo o que de bom e do bem-quer deseja trazer à sua Terra e às suas gentes. Polvilhada de estórias curiosas, uma centelha de sentido de humor ilumina essas passagens. A curiosidade de encontrar uma pequenina imagem do Bom Jesus da Pedra por entre palha, num recanto inesperado, leva a evocar a lenda da caixa que chegou ao Corpo Santo boiando nas marés, com as letras escritas “Para a Misericórdia de Vila Franca”.
A forte personalidade extrovertida, determinada e apaixonada foi temperada nas lutas entre obstáculos a vencer e adversários, há sempre alguns por toda a parte, concluímos que nesta obra há um percurso singular… Por certo que sente a dor do Sacrifício, mas que é também a alegria da Doação, oblação, de uma vida singular, que não se verga.
Antes aprendeu, como tantos vultos corajosos e trabalhadores esculpidos na longa galeria dos nomes ilustres orgulho esta Vila e de longe vem para longe ir. Como na mitologia, o Gigante Anteu que os outros Titãs não conseguiam vencer porque atirando-o ao chão erguia-se ainda mais Forte! Gea, a Terra, sua Mãe recebia-o e logo regressava ainda mais robusta. Foi um pouco assim a trajectória deste ilustre filho da vila, que Vila há só uma..
O tempo tem sempre a última palavra. Com esta obra nada se encerra. Antes se começa. Os vultos ilustres da Vila-Cidade, a primeira capital da ilha terão de esmaltar o percurso de mais um vulto singular que não se apaga, mas se agiganta no Tempo. A singularidade é o apanágio de quem faz os caminhos.
Lucia Simas