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Uma casa no meio do mar

Os cães começaram a ladrar mal ouviram os meus passos no corredor. Eram três cadelinhas, pelo curto, olhar sombrio e assustado. Às sete e meia da manhã ainda estava escuro. A casa dormia, pelo menos até àquele momento em que fizeram soar o alarme.
Para alcançar o quarto de banho tinha de passar por elas, na cozinha. Invadi-lhes o espaço, os restos da noite e o sono. Erguidas dos seus leitos com veemência elástica, foram recuando à minha passagem de olhos cintilantes. Aflito e estarrecido, tentava acalmá-las. Esforço infrutífero. Com um clamor daqueles, até um urso despertaria da sua profunda hibernação.
Fechei-me no quarto de banho. Cada movimento meu, por mais cauteloso, despoletava um novo chorrilho de protestos: a leveza de um passo, um inaudível pingo da torneira, a sombra da mão na toalha de rosto. Muito simplesmente, elas protestavam por qualquer e ininteligível som que eu, por muito cauteloso que fosse, produzia do outro lado da porta. Mesmo que levitasse, estou certo de que a sua apuradíssima audição encontraria, entre os meus passos e o chão, um ressoo ameaçador.
Como dizia o meu pai, eram “feras mansas”. Mas a verdade é que a acústica da cozinha permitia um efeito redobrado e demolidor em estereofónico, cuja polifonia repercutia, qual descarga eléctrica, das paredes às fundações. Não havia remédio para tão inflamado assalto. Deixei-me levar, enfim, pela agitada corrente daquelas águas sonoras. Combatê-las seria prolongar a agitação canina numa hora em que a casa, às escuras como a maioria da cidade de Ponta Delgada, revolvia-se ainda no deleite e na mornidão dos seus lençóis.
Já no resguardo do meu quarto, e sob a ténue luz do candeeiro, sentei-me a ler. Tinha comprado na véspera a reedição do livro Amores da Cadela “Pura”, de Margarida Vitória (Marquesa de Jácome Correia), que reunia dois volumes sob o mesmo título*.
Fui lendo devagar e descobrindo os meandros emocionais e afectivos de uma vida singular.
Quando o pousei, assaltou-me a impressão que sempre tive em relação ao título: não gosto, nunca gostei. Faz sugerir uma leitura brejeira sobre uma pessoa banal e vulgar. O que não é o caso.
Entretanto amanheceu. A casa silenciosa como um templo secular. Fui à janela. Ouvi passos na rua, aproximando-se. Um homem passou, rua abaixo, pisando a frágil luz matinal.
Na casa da minha tribo, quantas gerações do meu sangue passaram por ali? Emociona-me aquele espaço. Há vozes no silêncio das suas paredes, a incólume vertigem do tempo. Passei dois anos e meio da minha infância naquela casa, vindo de África. Mais tarde, após o desastre angolano de 1975, sete anos, até me radicar no Canadá.
Como se parte de um tempo que está sempre connosco quando a memória, como um membro do nosso corpo, nos acompanha para todo o lado? Vesti-me, peguei na máquina fotográfica e saí.
Ponta Delgada é a cidade mais antiga da minha vida. Aspirei, enlevado, o ar fresco da manhã. Dois sujeitos, o mais novo com ar bonacheirão, aspirou o cigarro e intercetou-me, muito solto a expelir o fumo:
— Bela máquina! O senhor importa-se de nos tirar uma fotografia?
Sentou-se ao lado do amigo no degrau da casa e registei o momento.
Ao fim da rua, voltei à esquerda e fui em direcção ao cais. Nuvens brancas e cinzentas desenhavam no céu uma imagem impressionista. Dirigi-me a um pequeno grupo de indivíduos agarrados a canas de pesca. Era muito cedo, suponho, ou tinham apenas temperamento carrancudo. Fui-me embora. Aproveitei a silhueta deles e fiz um registo fotográfico.
Chegaram duas traineiras e fui observá-las. Pessoal irascível, os pescadores. O cansaço da faina noturna, a impaciência, a vida mareada.
Meti-me em direção ao Campo de S. Francisco. Oiço, quando por lá passo, a voz de minha avó Irene entre os pombos que poisam no banco de Antero de Quental.
Pode ser apenas impressão minha, claro. Mas é assim que vejo as coisas – pelo lado de dentro.

  • Nascida em Ponta Delgada em 1919 num berço da aristocracia açoriana, foi uma mulher belíssima e muito elegante. Mercê de uma vivência cosmopolita e muito liberal para a sua época, experimentou uma vida de privilégios, solidão e amores intensos. Foi conhecida, por exemplo, a sua ligação amorosa a Vitorino Nemésio. Pormenor circunstancial, acrescento. Em assuntos de foro íntimo só este se deve pronunciar.

Eduardo Bettencourt Pinto

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