Regularmente lemos nos diários relatos arrepiantes de pessoas que morreram sós, na mais abjeta miséria e abandono, e só foram descobertas muito tempo depois.
Logo surgem comentadores bem-intencionados (ou oportunistas) a falarem das famílias que os esqueceram e abandonaram (em casa, no hospital, na vida), da ingratidão das novas gerações (a quem preconizam idêntica sorte futura).
E as pessoas que lêem isso nos jornais, nas redes sociais, ou na própria TV ficam por momentos, breves instantes compungidas e temerosas, imaginando que lhes pode suceder o mesmo. Eu nunca fui dessas pessoas, nunca me imaginei a viver só e a morrer só, e ao contrário de gene Hackman sem fama nem posses. A morte dele (nonagenário demente) e da sua jovem mulher (trinta anos mais nova) com uma semana de diferença em total solidão leva-nos a pensar. Todo o dinheiro, uma mansão enorme, a fortuna multimilionária e passaram-se dez a quinze dias sem que a empregada fosse lá a casa ver se estava tudo bem, ou o jardineiro, motorista, etc… já nem falo dos filhos e netos…
Eu que nem fama nem dinheiro tenho sempre imaginei que nunca morreria sozinho, e, de repente, o filho de 28 anos sai de casa, a mulher morre e fico sozinho com uma cadela. Eu, a pensar que só acontecia aos outros! Recordo e atualizo um extrato do que escrevi em 2024 sobre este tema:
A grande solução dos problemas do quotidiano é a de haver sempre um amanhã. Até um dia em que não haja. A recente morte da minha mulher obriga-me a pensar nisso e equacionar novos paradigmas, duvido sempre se haverá amanhã. Quando a deixei no Hospital nunca imaginei que para ela não haveria outro amanhã. A vida nunca mais foi a mesma, amar em morte é doloroso, reaviva os 1001 momentos bons que partilhamos e dos quais tenho saudades.
Sei que a memória vai fraquejando com a idade, tende a confundir tudo e a dar leituras erradas, mas a viuvez em idade avançada conduz a pensamentos filosóficos variados, como a descoberta da teleofobia. Essa condição está relacionada à ansiedade ou insegurança, quem sofre desse mal pode ter dificuldades em firmar compromissos ou criar metas de longo prazo. Também não sou do tipo dos que aceitam um qualquer metaverso, um ambiente digital compartilhado onde pode interagir com outras pessoas, jogar, trabalhar ou viver uma vida virtual. Grandes empresas de tecnologia, como o Facebook (agora Meta), estão investindo nisso.
Bem a propósito surge no ecrã a citação de Charles Bukowski “E quando ninguém te acorda de manhã, e ninguém te espera na noite, quando podes fazer o que quiseres, como se chama? Liberdade ou solidão?”
Sei a resposta mas não quero essa liberdade a que chamo solidão.
Pior do que isso ou do que aconteceu ao famoso Gene Hackman foi o caso do casal sexagenário nos arredores de Castelo Branco (meados de agosto 24), o marido teve morte natural, ela acamada morreu (de fome e sede?) sem assistência, ambos em lento estado de decomposição. Isso sim é solidão, numa sociedade de vasos comunicantes. Somos todos desconhecidos, mesmo que aparentemente haja amigos no Facebook ou outra rede social. Provavelmente aquele casal teria filhos e netos que os ignoraram, vivendo longe, preocupados com vicissitudes das suas pequenas e miseráveis vidas, sem tempo de pensar nos velhos.
Medito nisto e nos meus filhos. Morreria sem que soubessem, exceto a filha da Nini (que adotei como minha há 30 anos) que cuida de mim à distância com a prova diária de vida, e que me telefona ao fim de cada dia.
Se o alarme sobre o meu passamento não fosse dado com o dito telefonema diário, seria a nossa governanta Berta, quem me encontraria, a meio da semana, num qualquer recanto da casa, não muito decomposto nem mumificado. Pode ser que logo ao entrar na porta da rua o cheiro a alertasse ou a cadela ladrasse de forma distinta.
É um pensamento que agora me ocorre amiúde, quando estou no duche e em especial neste mês de março 2025 em que houve uns tantos sismos fortes na ilha de São Miguel . Quase como o pensamento se houver um desses sismos saio do chuveiro como Adão no Jardim de Éden? (perdoem a latitude do pensamento, nem sou Adónis, nem a Lomba da Maia é o Jardim de Éden).
Tento secar-me? Ou vestir-me? agarro num par de calças ou na toalha? ou decido-me a correr porta fora em busca da sobrevivência antes que tudo o mais? Imagino o riso e as caras da populaça ao ver-me naqueles preparos, lá se ia a imagem bem compostinha que tentei criar nestes 20 anos.
Por aqui se pode calcular que em caso de sismo, estivesse onde estivesse, optaria pela solução “ó pernas para que te quero e os pruridos e constrangimentos sociais viriam depois”.
Não entendo como as pessoas a quem tenho questionado sobre o tema, não têm (ou nunca tiveram) pensamentos ou temores destes, nem saibam dizer-me se sairiam do duche com toalha ou roupa.
Já por outro lado, morrer na sanita deve ser altamente desagradável, de odor desaconselhável, para quem descobrir o cadáver.
Outra morte que, inversamente ao descrito, faz sorrir, é a do idoso (um rapaz da minha idade!), numa missão de infidelidade conjugal (com ou sem Viagra) que desfalece para toda a eternidade em pleno ato, granjeando direito ao epitáfio “teve uma morte santa.” Pena teria eu da companheira de infortúnio, que em pleno exercício de atividade pessoal ou profissional, podia ficar irremediavelmente traumatizada, sem rendimento garantido e sem direito a apoio psicológico ou acompanhamento especializado.
Creio não andar longe da verdade se disser que a maioria sonha morrer no sono, sem se aperceber do despertar em nova dimensão.
Feliz ou infelizmente, cheguei à idade em que já não acredito no céu, nem em anjos e querubins a ladear um São Pedro de barbas longas e brancas, a verificar nomes na lista de admissão.
Agora que o Papa Francisco proclamou que não há Purgatório, esse limbo, antecâmara de melhores dias, devemos interiorizar em termos de céu que o inferno este existe aqui e agora. O inferno é a vida na Terra, pelo que o melhor é ser otimista e imaginar outra dimensão (qualquer que seja) melhor do que esta.
Atualmente também já não acredito no Terceiro Olho de Lobsang Rampa (que me fascinava em tempos de hippie nos anos 70) nem creio na reencarnação hindustânica. Talvez pretenda negar o temor extremo de regressar como barata. Como cucaracha nunca.
E ninguém me explica como foi possível a um velho ator, nonagenário, demente, milionário, morrer daquele modo. No meio da sua doença teria expulsado todos os funcionários em troca da solidão com que morreu?
Chrys Chrystello*
*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713
MEEA-AJA (IFJ)