“(…) uma das coisas mais importantes na atividade de pintar é poder terminar a tempo, é saber quando uma pintura diz o que pode ser dito, pois se uma pessoa se alonga demasiado acaba na maioria das vezes por destruir a pintura, e isso sempre eu soube desde que pintei o meu primeiro quadro, penso eu, porque é sempre possível, evidentemente, raspar e pintar de novo, ou pintar por cima, mas então a pintura parece que já não é ela própria (…)”.
(em “Septologia: O eu é um outro”, Jon Fosse, 2020)
A Organização Mundial de Saúde anunciou que cerca de mil milhões de pessoas vivem com problemas de saúde mental, concluindo a necessidade de políticas de saúde mental à escala global. É certo que a insuficiente resposta de cuidados de saúde mental e acesso a recursos por grande parte da população nos convoca a reunirmos esforços na promoção de literacia em saúde mental para que a população saiba identificar sintomas e/ou défices, e procurar recursos. Há, no entanto, um trabalho paralelo ao qual não podemos fugir: a reflexão sobre a forma como a organização social e cultura não apenas impactam na nossa saúde mental, mas inclusivamente estipulam o que é ou não alvo de cuidados de saúde mental, i.e., definem o que é ou não doença e saúde. A fuga para a frente que se aprende em qualquer curso de psicologia e psiquiatria (o sofrimento psicológico como trave-mestra da definição do que está dentro ou fora da “perturbação”) é deveras insuficiente na sua tautologia: o sofrimento é clínico porque causa sofrimento. O modelo de produção, de trabalho, e de relações laborais não apenas contribui para o sofrimento psicológico, como define esse mesmo sofrimento ao apresentar o “funcionamento” como sinónimo de produtividade (laboral, interpessoal, ocupacional), e a sua ausência como sinal major de perturbação, rejeitando a fluidez da interioridade e a transitoriedade de estados emocionais como experiências normativas e humanas. Vivemos num tempo que patologiza o sofrimento e vive fixado na felicidade, não sabendo, contudo, operacionalizar um ou outro.
Este devaneio foucaultiano materializa-se no início e fim do acompanhamento psicológico. Num capítulo basilar de ética em terapia, Younggren e Davis referem que cabe ao profissional identificar quando não é proveitoso (ou é maleficente) iniciar-se ou não se terminar um processo terapêutico. Ainda que Tolin et al tenham avançado recentemente com uma operacionalização de “intervenção psicológica”, há um debate crucial sobre o papel das ciências da saúde mental na patologização do humano como objeto inquebrável (veja-se a apropriação do conceito físico de resiliência), nomeadamente os campos de atuação difusos do desenvolvimento pessoal. Num estudo publicado recentemente por Jorm et al, concluiu-se que a população (australiana) identifica como patológicas situações não-patológicas. Isto sugere a importância de comunicarmos com mais nuance sobre saúde mental, sem patologizar a totalidade do sofrimento humano, contribuindo, simultaneamente, para uma maior literacia e acesso a recursos. É fundamental sermos capazes de identificar o momento e implementar o freio na terapia, identificando quando somos guiados pela padronização da experiência humana, e reconhecendo que na pintura de uma vida plena, o sofrimento faz parte da paisagem.
Fique bem, pela sua saúde e de todos os Açorianos!
Um conselho da Delegação Regional dos Açores da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
Sérgio Andrade Carvalho*
*Investigador Doutorado CINEICC/
Professor Auxiliar Convidado FPCEUC