Num momento em que os nacionalismos regressam e o projeto europeu é tantas vezes reduzido a números e subsídios, vale a pena recordar Sofia Corradi e o programa que fez da mobilidade um sinónimo de identidade europeia.
Este ano voltei a Bruxelas, vinte anos depois da primeira vez que lá estive, mas agora acompanhado pelos meus dois filhos adolescentes, a consequência pessoal de uma história extraordinária que começou com Sofia Corradi, que faleceu na passada sexta-feira, 17 de Outubro, aos 91 anos. Quando soube da sua morte, pensei de imediato em como a sua visão não só transformou a Europa, como também inúmeras vidas, tal como a minha. A criadora do programa Erasmus, carinhosamente conhecida como “Mamã Erasmus”, transformou a forma como milhões de jovens europeus vivem o projeto europeu.
O programa Erasmus foi criado em 1987 como uma iniciativa de intercâmbio para estudantes do ensino superior. No seu primeiro ano, 3,200 estudantes de 11 países europeus (Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Grécia, França, Irlanda, Itália, Países Baixos, Portugal, Espanha e Reino Unido) participaram numa experiência que viria a redefinir o significado de ser europeu. Em 2024, mais de 16 milhões de pessoas já tinham participado naquele que se tornou um dos maiores sucessos da União Europeia.
O Estudo de Impacto Erasmus (2014) mostrou como o programa ultrapassa largamente as fronteiras académicas e profissionais: 33% dos antigos estudantes Erasmus diziam ter parceiros de outra nacionalidade (contra 13% dos que nunca estudaram fora), e um em cada quatro tinha encontrado o seu companheiro durante o intercâmbio. A Comissão Europeia estimava mesmo que cerca de um milhão de “bebés Erasmus” tenham nascido desde 1987. O programa não construiu apenas carreiras, mas também famílias, amizades e uma identidade europeia partilhada.
A ideia que tornou tudo isto possível começou nos anos 1960, quando Corradi regressou a Itália depois de uma bolsa Fulbright nos Estados Unidos, e descobriu que os seus estudos no estrangeiro não eram reconhecidos. Determinada, passou décadas a convencer universidades e decisores políticos de que a mobilidade e o reconhecimento mútuo das qualificações eram essenciais para o futuro da Europa. A sua persistência resultou no programa Erasmus, lançado em 1987, e que em 2014 evoluiu para Erasmus+, abrangendo também escolas, formação profissional e programas de juventude.
Sofia Corradi recebeu o Prémio de Cidadania Europeia em 2016, mas o seu verdadeiro legado vive na geração de jovens que aprenderam não apenas sobre os outros, mas também sobre si próprios, graças à liberdade de atravessar fronteiras.
Em 2023, os Açores acolheram 978 participantes Erasmus e enviaram 397 Açorianos para o estrangeiro: mais do dobro de entradas do que saídas. Espanha foi o principal país de origem (22% dos participantes), seguida pela Alemanha (11%), Itália (10%) e França (8%), com fluxos significativos também da Polónia (8%), Roménia (7%) e Chéquia (5%). Os Açorianos, por sua vez, escolheram como destinos mais frequentes a Itália (23%), a Espanha (15%), a França (13%), a Roménia (11%) e a Alemanha (8%).
Numa altura em que os movimentos nacionalistas voltam a ganhar força na Europa, é importante lembrarmo-nos daqueles que tornaram possível o verdadeiro espírito europeu: o livre movimento de pessoas. E é no domínio da educação que esse movimento assume um significado especial, pois é nele que crescemos não apenas em conhecimento, mas também em compreensão mútua.
Numa região onde tantas vezes o projeto europeu é reduzido à questão dos subsídios, vale a pena recordar a visão de Sofia Corradi: o Erasmus faz dos Açores parte viva da Europa.
José Basíllio
Analista de Dados Sénior