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Romeiros – renovando uma tradição secular (Parte 2)

Uma curiosidade final: o autor, alentejano, já na primeira parte do livro apontara semelhanças entre a cultura micaelense e a alentejana (noutra passagem o autor já havia aludido às afinidades entre a toada do canto dos romeiros e a dos cantares alentejanos) e termina assim o livro narrando o seu regresso a casa, em Lisboa:
Quando ao final da tarde, eu metia a chave à porta do prédio onde habito, saiu o meu vizinho Diamantino.

  • Então vizinho, vem de alguma viagem ao Alentejo?
  • Alentejo? Porque diz isso? – perguntei, já a adivinhar a resposta.
  • Então, de lenço alentejano atado ao pescoço e pau de varejar azeitona na mão, fácil é concluir que só pode vir do Alentejo.

Registo estas observações apenas como leitor desse interessante relato de um romeiro de fora da ilha que se integrou num rancho como se da ilha fosse. O simples facto da possível ligação entre o Alentejo e S. Miguel não é suficiente para explicar o fenómeno, que suponho exclusivamente micaelense. Sempre houve manifestações vulcânicas e abalos de terra em quase todas as ilhas dos Açores e, no entanto, apenas em S. Miguel o fenómeno ocorre. A mim, que há cinquenta anos vivo num bairro de Providence marcadamente judeu, sinto-me levado a associá-lo com a celebração anual do Atonement – a data judia da expiação, reparação e de reconciliação entre a humanidade pecadora e Deus – se bem que proporcionalmente bem longe na sua manifestação pública. Ela é, aliás, uma versão da desobriga, a confissão geral praticada na Quaresma. Na história das religiões, essa expiação /renovação está associada à ideia de sacrifício e manifesta-se num ritual de limpeza e de busca de pureza moral, ou pelo menos de tentativa de repurificação moral. Por outro lado, ocorre-me um outra associação: quem alguma vez teve uma experiência Zen reconhecerá que a repetida cantilena da Avé-Maria dos romeiros acaba produzindo uma intensa ligação entre os elementos do grupo, numa espécie de cadeia absorvente e criadora de uma sensação de unidade, que os romeiros micaelenses referem como “fraternidade”, termo por sinal consignado no título deste álbum hoje a ser aqui lançado.
Mas voltando ao tema do atonement, essa quase universal necessidade de expiação e reconciliação parece-me poder explicar em parte (e sublinho: em parte) a sobrevivência das romarias pois, como atrás disse, não ouço nunca os atuais romeiros evocarem a importância de se aplacar a ira de Deus castigador com vulcões e terramotos como razão para o seu envolvimento na peregrinação. Quer dizer: suponho que as circunstâncias telúricas açorianas terão levado ao estabelecimento da tradição, todavia ela aos poucos ter-se-á transformado num ritual de expiação e renovação espiritual. Pelo menos é isso que depreendo dos relatos dos romeiros que leio, ou com quem converso. A vulcanologia e os abalos de terra contextualizaram e terão dado forma ao fenómeno micaelense, no entanto ele insere-se numa longa, antiquíssima e universal tradição de expiação, purificação e religação com o divino. A necessidade da limpeza profunda que justificava a antiga confissão anual seria uma dessas manifestações. A vontade humana de viver mais e melhor, renovando-se e ressurgindo da queda parecem-me a mim a mais natural explicação desta tradição. Para poder afirmá-lo com mais segurança, seria importante entrevistar os romeiros atuais e perguntar-lhes por que razão se incorporam com tão abnegada convicção nesse exigente ato anual. Quase aposto que nenhum invocaria a razão histórica de terramotos e vulcões. Mas, que eu saiba, esse estudo ainda está por fazer.
Faço questão de acrescentar que sou o primeiro a reconhecer tratar-se apenas de um aspeto do complexo fenómeno das romarias micaelenses. Outros devem existir e escapam-me, como creio que escapam aos autores de tudo aquilo que sobre o fenómeno leio na tentativa de compreender algo que eu próprio nunca experienciei. Como disse, terramotos e vulcões sempre existiram ao longo da história dos Açores e só em S. Miguel as romarias surgiram. Os mais trágicos terramotos a afetar zonas urbanas ocorreram em 1522 em Vila Franca do Campo e em Angra, em 1980, mas há outros como o da Praia da Vitória em 1841 e no entanto nenhuma romaria surgiu na ilha Terceira. Vulcões não faltaram na história dos Açores, sendo o mais recente o dos Capelinhos. Em todas elas houve forte movimentação religiosa a implorar a misericórdia divina, todavia só em S. Miguel esse fenómeno se firmou em sólida tradição. Com isto quero apenas significar que admito a minha incapacidade de explicar a persistência através de tantos séculos desta manifestação singular. A alguém que nestes dias argumentou com o facto de agora terem começado a surgir romarias também noutras ilhas, respondi que a explicação para isso me parece mais com a humana necessidade da tal experiência de catarse, expiação e renovação. De qualquer modo, não acredito que venha a atingir nada que se pareça com a dimensão e a intensidade do fenómeno micaelense.
No entanto, a minha vinda aqui teve a ver sobretudo com a apresentação e o elogio do – a todos os títulos – magnífico trabalho fotográfico de Jorge Barros e do seu filho Pedro, que gravaram imagens a partir de agora indeléveis de momentos dessas romarias quaresmais. Cada página é um mergulho nas profundezas de um mistério apenas refletido nos rostos dos peregrinos, apontando para algo inacessível e insondável para quem apenas contempla de fora. Não é preciso ser-se religioso para se admirar a beleza e a densidade humana destas impressionantes e poderosas imagens do fotógrafo (e seu filho), mestre na arte de agarrar o real em imagens. Elas falam por si. E eloquentemente. Como tal, sem dúvida dispensariam qualquer palavreado. Especialmente o meu, pois a experiência dos artistas foi vivida na pele acompanhando-os bem de perto a fotografá-los. E eu nem isso.

Onésimo Teotónio Almeida

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