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“Trilhos dos Açores precisam de urgentes e profundas mudanças”

Luís Silva recuperou mais de uma dezena de trilhos na Povoação

Luís Silva, conhecido amante da natureza da sua ilha, que regressou do Canadá, onde residia, esteve muitos anos envolvido na construção de trilhos em S. Miguel, nomeadamente no concelho da Povoação, tendo recuperado uma dúzia deles que há muitos anos eram utilizados pelos nossos antepassados. Sendo profundo conhecedor da rede de trilhos na ilha, decidiu lançar um grito de alerta, a que se junta o “Diário dos Açores”, a favor da manutenção urgente de muitos dos trilhos que existem e que precisam de mudanças profundas, como ele próprio alerta, no testemunho na primeira pessoa que a seguir publicamos.

Sempre com grande emoção, ainda jovem, nos anos 1960, percorri quase todos atalhos da minha freguesia.
Cada passo fazia sentir-me parte de uma cultura e de um povo que, há mais de 500 anos, utilizava aqueles caminhos estreitos para chegar à beira-mar, aos picos, às ribeiras, às terras agrícolas e às freguesias vizinhas.
Já adulto, no Canadá, retomei o gosto pelas caminhadas e tive oportunidade de fazer muitos trilhos no Este e no Oeste deste imenso país e também percorri alguns nos Estados Unidos da América.
Em todos, encontrei (como vou encontrando aqui, nos Açores) gente interessada nesta forma acessível de imergir na natureza e desfrutá-la, com benefícios para todas as partes.
Sempre com os incomparáveis atalhos da minha infância e juventude em mente, já nos anos 1990 e perante a perspetiva de regresso aos Açores, elaborei um projeto de rede de trilhos.
Contactei o departamento de parques e recreio do governo canadiano para me apoiar.
A resposta não demorou e recebi várias informações muito úteis para planificação, construção, gestão e manutenção de trilhos, incluindo manuais e legislação.
Paralelamente, colhi informação junto de outras entidades, como os departamentos governamentais respetivos da Nova Zelândia, da Inglaterra e do estado do Havai (EUA).
O projeto, elaborado com o apoio de um economista, de um engenheiro e de uma associação de desenvolvimento local, foi apresentado ao meu município, que decidiu remetê-lo ao Governo dos Açores, pedindo apoio e financiamento.
E, apesar de a Direção Regional do Turismo ter disponibilizado uma verba, passaram-se anos, comigo no Canadá, sem que o projeto tivesse sido executado ou a Câmara tivesse dado mais alguma atenção ao assunto.
Quando regressei, em 2003, abordei novamente a Câmara, pois considerava que o projeto da rede de trilhos continuava válido. A Autarquia concordou e até me contratou para o executar.
Durante três anos e meio, com uma equipa de quatro trabalhadores municipais, concluiu-se o projeto, com o apoio de muitas pessoas e entidades locais e também de Portugal continental, da Madeira e das Canárias.
Nesse período, profissionalmente muito gratificante, frequentei várias formações nas áreas de turismo de natureza, pedestrianismo e ambiente.
E a rede municipal ficou com 12 trilhos homologados. Todos recuperados dos atalhos utilizados pelos nossos antepassados, durante séculos.
Quando acabei o projeto, rumei a outras paragens profissionais, algumas nas áreas do turismo e da conservação da natureza.
Hoje, aposentado, dedico algum do meu tempo a refletir sobre como podia ter feito melhor.
E isso leva-me a olhar para onde chegámos e para a situação atual dos trilhos, no meu concelho e nos Açores em geral.
Sem apontar o dedo a ninguém, pessoas ou entidades, o panorama dos trilhos pedestres nos Açores – sendo o produto turístico mais importante (dito pelos próprios turistas, quando inquiridos em estudos encomendados pelos governantes) do turismo da natureza, no qual a região pretende afirmar-se – está tão longe das melhores práticas internacionais que obriga a urgentes e profundas mudanças.
Neste sentido, mais uma vez, quero dar o meu contributo cívico desinteressado, deixando aqui apenas duas ideias fundamentais, relativamente à legislação e ao financiamento, sem prejuízo de outros desenvolvimentos posteriores, mais pormenorizados.

LEGISLAÇÃO – O “Regime jurídico dos percursos pedestres da Região Autónoma dos Açores” em vigor data de 2012, apesar de referir, no primeiro parágrafo, que “o incremento da atividade turística na Região Autónoma dos Açores associada ao turismo da natureza obriga a um olhar permanente e atento em torno da legislação existente e à sua contínua atualização.”
Não só a atualização não tem sido feita, como este diploma – que simplificou o anterior, de 2004 – não aborda questões essenciais na gestão dos trilhos, contribuindo para a inviabilidade e encerramento de vários desses percursos pedestres.
Estranhamente, o partido que agora lidera o Governo e que, em 2019, apresentou uma proposta de revisão do Regime (rejeitada pelo parlamento), ainda não deu qualquer passo para “fomentar políticas de sustentabilidade que associem o crescimento económico e o desenvolvimento social com a conservação dos recursos naturais, por via da potenciação dos percursos pedestres”, como escreveu na proposta chumbada, nomeadamente quanto à gestão dos trilhos.
“A gestão, incluindo a inventariação, classificação, homologação, sinalização, manutenção e encerramento dos percursos pedestres, constitui competência executiva do departamento do Governo Regional competente em matéria de turismo, devendo o mesmo constituir um conselho de gestão”, defende o referido projeto de Decreto Legislativo Regional rejeitado em 2019.
Este ponto é fundamental para acabar com o atual paradigma, que coloca o ónus da gestão e manutenção dos trilhos nos promotores, entidades públicas e privadas, desarticuladas, e, muitas vezes, sem meios para evitar a evidente degradação da rede de trilhos dos Açores.
A forma negligente e desastrosa como os trilhos pedestres açorianos têm sido geridos na última década dá uma má imagem dos Açores, despreza um importante recurso e põe em causa a segurança das pessoas (infelizmente, já com consequências trágicas).

FINANCIAMENTO– O argumento de que “não há dinheiro” não é válido. Muitas outras iniciativas, bem mais dispendiosas, vão surgindo.
O que não há é dinheiro para os trilhos.
E alguém consegue compreender a razão pela qual não se investe no core do nosso turismo?
Mesmo sabendo perfeitamente a importância dos trilhos, os governantes não agem em conformidade.
Por isso, a solução está em fazer como, por exemplo, o Havai, um arquipélago com características semelhantes ao nosso, mas a anos-luz de avanço no desenvolvimento turístico.
No Havai, a verba destinada à gestão dos trilhos está consignada legalmente por uma percentagem (invariável) do orçamento estadual.
Isto faz com que não sejam os humores dos governantes a decidir se há ou não dinheiro para manter e melhorar um produto essencial para a atividade económica da região.
É esta garantia que os Açores precisam.
Os trilhos são uma prioridade.
E nunca se esqueçam que os atalhos, antes de serem importantes para o turismo, com toda a prosperidade que trazem, até a zonas remotas, têm de ser importantes para os açorianos, pois são parte da nossa cultura e da nossa história e são essenciais para a vigilância do território.

     Luís Silva
    (Fazedor de coisas)
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