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Nos primeiros trinta e muitos

Nos primeiros trinta e muitos anos da minha vida não me foi dado o privilégio de viajar e conhecer outros mundos. A ilha das Flores era praticamente desconhecida, a minha vida era feita de rotinas embora a minha cabeça tenha começado a viajar muito mais cedo. Mas esse “sonhar acordada” não me levou para lá de um horizonte visual muito reduzido.
Os primeiros anos da democracia trouxeram muitas novidades mas foram precisos alguns anos para que se notassem as grandes diferença que nos fizeram sentir que tudo estava a mudar.
Com a entrada de Portugal na comunidade económica europeia foram aparecendo sinais da vitalidade de outros países e em poucos anos, a nossa vida mudou radicalmente. Hoje, viajar é barato e é extremamente fácil. Depende das expetativas que criamos e daquilo que exigimos da viagem.
Durante toda a minha vida, sempre vi as Flores como um lugar onde nunca faltou o essencial. Lembro-me de viver sem eletricidade, sem barco todos os meses, sem aeroporto e com pouquíssimos carros mas ainda assim, não tenho memória de me ter faltado alguma coisa essencial.
Hoje em dia, temos tudo como em todo o lado. Para muita gente este meu “tudo” é “ quase nada”. São formas diferentes de encarar a realidade e, seguramente, formas extremamente diferentes de distinguir o fundamental do acessório.
Nos últimos anos tenho viajado bastante. Tenho consciência de que as forças já não são o que eram e sei que a tendência não é melhorar. Tenho aproveitado para espreitar o mundo e perceber como vivem outros povos e como se comportam noutras culturas. E reconheço que é a melhor coisa que se pode fazer para ganhar conhecimento
Talvez movida pela necessidade de grandeza, gosto sempre de fazer a ronda das lojas grandes e dos supermercados imensos onde a minha ansiedade de fartura se realiza. Gosto dessa ronda pela excepcionalidade da oferta e pela quantidade imensa de produtos que são hoje oferecidos ao consumidor. E aqui reside também um grande problema na minha modesta opinião: o problema da escolha.
Numa prateleira com dez produtos diferentes para responder a uma necessidade, perdemos tempo e temos que investir emoção para decidir qual deles levar. E isso acontece com dezenas de produtos: comida, sapatos, vestidos, carteiras, presentes, etc, etc. É um exercício cansativo, desgastante e frustrante. Uma pessoa sabe o que quer e do que gosta mas só tem recursos para comprar aquilo que gosta menos, por exemplo. Fica frustrada e triste ou vai além daquilo que pode.
Acredito que parte da instabilidade dos jovens de hoje se deve ao exagero de coisas e oportunidades disponíveis e a frustração da escolha necessariamente mais próxima da sua realidade económica e social. E assistimos cada vez mais a disputas das crianças com os pais no meio das prateleiras do supermercado a exigir coisas que os progenitoras não podem ou não querem dar.
Tenho tido muito boas experiências em países diferentes porque já não tenho o apelo de comprar como quando era jovem. E, verdade seja dita, já me cansam as superfícies demasiado grandes. Na verdade, não ter grande escolha é um descanso.
Percebi que estava a ficar velha quando comecei a sentir saudades da pequenez em que cresci mas onde agora sei que tenho tudo o que preciso. E sei que os melhores legumes estão no meu quintal, que o melhor restaurante é a minha casa e o melhor lugar do mundo é a minha ilha. Onde realmente, não falta nada!

Gabriela Silva

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