O anterior Governo, liderado pelo socialista António Costa, enviou para o Tribunal Constitucional (TC) o regime do domínio público hídrico dos Açores e o decreto que desafeta terrenos em Santa Maria.
Na missiva dirigida ao Presidente do TC, o anterior chefe do Governo alega que os decretos legislativos regionais são inconstitucionais por “violação de reserva de lei parlamentar” e porque estão em causa “bens dominais do Estado”.
O pedido de fiscalização da constitucionalidade recai sobre o Regime Jurídico do Processo de Delimitação e Desafetação do Domínio Público Hídrico na Região Autónoma dos Açores, em que a região assume a competência de regulamentar lagoas, lagos, cursos de água e arribas.
Associado àquele regime, António Costa também pediu ao TC para analisar o diploma que desafeta “do domínio público marítimo, por motivos de interesse público, a parcela de terreno onde se encontram implantadas as ruínas do Forte de São João Baptista da Praia Formosa”, na ilha de Santa Maria.
O assunto foi levantado pelo deputado do PAN/Açores, Pedro Neves, durante a discussão do Plano e Orçamento da Região para 2024, que está a decorrer na Assembleia Legislativa Regional, na Horta.
Costa diz que os Açores
excederam-se
Na exposição, o anterior Primeiro-ministro pede a ilegalidade do regime, alegando que refere-se ao “domínio público marítimo, como se o mesmo integrasse o domínio público da Região ou como se a Região pudesse regular a titularidade de bens dominiais do Estado”.
Nada impede os Açores de “legislar sobre gestão do domínio público hídrico regional, contando que o não exceda e não interfira unilateral e inovatoriamente, como o fez, com parcelas próprias do domínio público marítimo do Estado”, lê-se no documento.
Já quando está em causa o domínio público marítimo “só o Estado pode dispor sobre a afetação de bens do seu domínio ou regular os termos da gestão partilhada desses bens com a região”, defende o anterior primeiro-ministro.
“O Governo Regional não tem competência para a homologar unilateralmente propostas de delimitação das comissões regionais das águas interiores fluviais e lacustres e respetivos leitos e margens em zonas sujeitas à influência das marés”, justifica.
Para o anterior executivo, mesmo em situações onde pode convergir o domínio público regional e o domínio público do Estado (como em águas interiores, lagos e lagoas) “não é possível reconhecer às regiões poderes de disposição sobre o domínio que frustrem o objetivo que fundamenta a titularidade do Estado”.
O pedido do gabinete do então Primeiro-ministro foi enviado ao TC pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado em 1 de abril, último dia de António Costa em funções.
Bolieiro exorta Parlamento
a contestar
O líder do Governo açoriano exortou o Parlamento regional a contestar a iniciativa de António Costa, que enviou para o Tribunal Constitucional o regime do domínio público hídrico e o decreto que desafecta terrenos em Santa Maria.
“A temática que agora se levantou a propósito de um pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade de normas deste Parlamento, pedido subscrito pelo antigo Primeiro-ministro de Portugal, revela que o país, e que alguns centralistas deste nosso país, continuam a achar que o nosso activo, o mar, que a nossa autonomia, a vontade de defender o que é nosso, valorizar o nosso potencial num quadro nacional, comunitário e mundial, continua a ser uma bandeira de defesa autonómica”, afirmou José Manuel Bolieiro (PSD).
O Presidente do Governo açoriano falava no Parlamento regional, na Horta, no segundo dia do debate sobre o Plano e Orçamento do Governo Regional para 2024, onde o deputado do PAN, Pedro Neves, abordou o assunto.
“Eu hoje gostaria, instado a fazer esta intervenção neste debate de orientações de médio prazo e de Plano e Orçamento, exortar este parlamento que, sim, pode fazê-lo: Um protesto e uma censura à iniciativa deste antigo primeiro-ministro relativamente a este assunto, mas também a fazer prontamente o trabalho que lhe deve”, afirmou.
E prosseguiu: “A de fazer a defesa da constitucionalidade destas normas legislativas, preparar junto do Tribunal Constitucional a defesa desta nossa prerrogativa e deste nosso objectivo”.
“E se ele não for suficiente no quadro do texto constitucional atual para garantir este direito, essa prerrogativa ao povo insular que somos e à Região Autónoma que somos, que se faça no quadro da revisão constitucional a clarificação do normativo constitucional, que acabem dúvidas sobre esta matéria”, admitiu.
Bolieiro disse ainda que, “infelizmente, para além desta atitude centralista no pedido da fiscalização”, também não tem “boa nota na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que costuma sempre interpretar da forma mais restritiva os poderes e as prerrogativas autonómicas”.
“E, portanto, não tenho certeza positiva quanto ao que pode ser a conclusão deste processo. E já é tempo de afirmarmos esta vontade de, no quadro constitucional, garantir os nossos direitos e as nossas prerrogativas porque o ativo mar é dos Açores: tem influência e cria dimensão ao país e à União Europeia. E nós não prescindimos dos nossos direitos e prerrogativas”.
A concluir, reafirmou a exortação ao Parlamento açoriano para que “faça a boa defesa da constitucionalidade” das normas agora questionadas pela República.
PS discorda de António Costa
O deputado e líder do PS, Vasco Cordeiro, também se pronunciou sobre o assunto.
Apesar de ainda não ter tido oportunidade de ler o documento “com a devida ponderação”, afirmou que “não restam dúvidas em relação àquilo que o PS pensa sempre e acha”, uma vez que os decretos em causa foram aprovados pelo último Governo Regional do PS, ao qual presidiu.
“Isso diz tudo, julgo eu, sobre a discordância que há, profunda, clara, inequívoca, entre aquilo que o Governo Regional dos Açores do PS pensa e acha sobre essa matéria e aquilo que, aparentemente, o antigo primeiro-ministro entende sobre este assunto”, disse.
“Neste assunto, não estamos seguramente de acordo com o Dr. António Costa, como não estivemos noutros assuntos”, assumiu Vasco Cordeiro.
E rematou: “Se outras razões não existissem, o facto de ser sobre decretos aprovados pelos Governos Regionais do PS [que governou a região entre 1996 e 2020] e por uma Assembleia Legislativa na qual o PS tinha a maioria, diz tudo quanto à diferença de entendimento e à discordância profunda com esse pedido de declaração de inconstitucionalidade”. Salientou o facto de António Costa ter “esperado pelas 20h33 do último dia de funções para enviar para o Tribunal Constitucional um pedido de inconstitucionalidade de normas regionais”.
“Ou é à socapa, ou é para tentar (…) induzir em erro as pessoas, pensarem que tinha sido outro [Primeiro-ministro] a fazer esta brincadeira”, disse, lamentando que “qualquer Primeiro-ministro, que no último dia de funções, já pela noite dentro, se dá ao trabalho de ter uma atitude destas contra a Região Autónoma dos Açores e contra os açorianos”.