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O maior valordo 25 de abril

“Dito de outro modo: assim como o Chega tem direito a essa personalidade imperfeita de pessoa humana, e todos os outros têm de a respeitar; de igual modo, a maioria da personalidade tendencialmente imperfeita da pessoa humana dos outros têm o direito de a interpretar e criticar.”

É inquestionável que a liberdade é a base da Revolução dos Cravos. De igual modo a democracia que, sem ela, a liberdade não seria conquistada nem assegurada em continuum. Mas, como que sorrateiramente, um valor mais alto foi implementado: a ideia e o conceito, o princípio e a norma que institui que a República portuguesa é baseada na dignidade humana. Artigo 1.º da Constituição «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.» Esta norma no texto da Constituição originária de 1976 era idêntica em quase tudo: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes»; e na revisão constitucional de 1989 fixou-se o texto final atual e antedito.
Dessa regra basilar de que o país se baseia na dignidade humana nascem todos os direitos, inclusivamente o direito à estupidez política. É esta a grande conclusão do 25 de Abril: é tão ampla a liberdade política, por via da sua sustentação na dignidade humana, que a estupidez política é normalizada, mesmo que daí possa provir, com o tempo, grandes males para a própria dignidade humana.
O Chega é um partido político que representa esse modelo de estupidez política. Representa também a atual crise de identidade humanitária tão em voga e que a filosofia atual lhe estuda os contornos: a solidão da humanidade na ausência da proteção tribal, empurra-a para os extremismos, focalizando-a num regresso ao tribalismo nas formas de seitas (Peter Sloterdijk, Reflexos primitivos). Mas além dessa, representa aqueloutra que queremos sublinhar: o direito a ser-se estupido no sentido kantiano do termo e, assim, nasce a estupidez política. O princípio da realidade impõe-nos a estupidez política e, por via disso, por vivermos numa república que se baseia na dignidade humana, ela é normalizada – porque toda a dimensão humana tem direito à sua existência. Esse contraditório é perigoso porque pode colocar em causa a própria República; mas não é o perigo que, em si mesmo, pode impedir esse direito à estupidez. A democracia procedimental fará os ajustamentos através do diálogo e dos acertos constantes como o de continuamente acertarmos os relógios.
Entre tantos exemplos, destacamos dois que ilustram a estupidez política em Portugal, e nos Açores, do Chega que, repete-se, ela existe e tem direito a existir e, como existência, também está sujeita à universalidade da dignidade humana. Dito de outro modo: assim como o Chega tem direito a essa personalidade imperfeita de pessoa humana, e todos os outros têm de a respeitar; de igual modo, a maioria da personalidade tendencialmente imperfeita da pessoa humana dos outros têm o direito de a interpretar e criticar. Um dos exemplos ilustrativos está precisamente na regra-sede da República portuguesa.
No seu mais recente projeto de revisão constitucional o Chega propõe alterar aquela regra estrutural do país, propondo «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana, no trabalho, na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.»
Ora no projeto em nenhum lugar se dá justificação para inserir o vocábulo “trabalho” numa norma constitucional, a primeira por sinal, que é a trave-mestra da República. Não é possível justificar tal inserção que não seja num registo de estupidez política: não só não tem contexto; assim como destrói todo o sentido supremo da norma. Mas não está proposto por acaso: nos pilares do ideário do Chega subsiste uma ideia de quem tem trabalho e trabalha tem mais direitos do que aquele que não trabalha e não tem trabalho; e isso, em si mesmo, contradiz toda a norma e desde logo a instituição da dignidade humana, pois na estrutura da República não existe apenas o elemento trabalho, também subsiste a cultura e todas as outras mundividências da sociedade. Embora existam muitas pessoas que fogem do trabalho para viver da esmola e do subsídio, não é esse pequeno número que distingue a (totalidade da) sociedade. Essas pessoas, afinal, às vezes também são pobres de espírito, e, como tal, merecem a sua dignidade humana e o tratamento adequado a uma sociedade livre, justa e solidária. Além disso, o projeto contradiz a sua primeira finalidade, «uma reforma de fundo, uma proposta que visa: 1. A neutralidade ideológica da Constituição; (…)». Ou seja, o partido visa mudar a Constituição para torná-la neutra em muitas matérias onde a ideologia é exagerada e sem necessidade; e, contra si, e contra o país, e contra injustificadamente a Constituição, propõe colocar numa norma inicial, estrutural e universal, precisamente a ideologia do trabalho como fonte de respeito da cidadania. Esta cunha nesta norma daria à Constituição portuguesa, além duma imagem estática de estupidez humana, um segmento de que o país se baseia no trabalho, mas não na cultura, não na saúde, não na educação, não na juventude, não na família, e muitos nãos. A dignidade humana abraça tudo quanto seja humano.
O segundo exemplo ilustrativo está na forma como o Chega trata o partido nas regiões autónomas (e os restantes partidos assim se projetaram também, com exceção de Montenegro). Vai sempre num registo de quero, posso e mando – coisa que nenhum outro partido o faz por respeito à autonomia (das secções) dos partidos nas regiões autónomas. A ideia, nova, de que é o líder nacional que define a política regional autonómica do seu partido, concorre para um regresso ao modus operandi do Estado Novo. Na bruma da agitação política com tendência para as direitas esses pormenores passam despercebidos. Vivemos, sem qualquer dúvida, em democracia, como foi visível nas eleições recentes dos Açores e do país, onde todos pudemos, em liberdade e igualdade e oportunidade, propor projetos e ideais, e onde todos puderam também dar o seu voto em total ausência de interferências psicológicas, não obstante com algum consenso psicadélico. No meio de tanta charlatice e prepotência, inocência e ilusão, tudo em tudo correu com normalidade. Mas fica a imagem de que, em qualquer momento, os insulares são autónomos, mas não no que tange aos partidos políticos.
Podemos concluir: a República portuguesa como centro nevrálgico na dignidade humana concretiza o 25 de Abril. Essa dimensão universal remete para valores supremos, não apenas da vida e da qualidade da vida, mas mais além e aquém da própria dignidade humana. Mas também, pela mesma esquadria, permite a estupidez política como um direito igual aos outros. Por felicidade essa razia racional é mantida dentro da democracia que tem meios naturais de sarar a perturbação psicológica e egocêntrica.

Arnaldo Ourique

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